No papiro de Ebers, tratado de medicina egípcio datado de 1550 a.C., algumas bases do que viriam a ser os modernos suplementos alimentares foram descritas. Outras ideias já tinham sido gestadas por chineses e permearam escritos gregos e indianos sobre fórmulas com propriedades capazes de melhorar a saúde. Essa linha se sofisticou e evoluiu até virar uma indústria que movimentou em 2024 cerca de 486 bilhões de dólares, atrelada ao poder de viralização dos influencers e a brechas na legislação. A previsão é de passar 704 bilhões de dólares até 2030. No Brasil, o setor gira de 6 a 7 bilhões de reais ao ano. “A expectativa é que esse valor dobre até 2028”, afirma Alberto Moretto, conselheiro da Brasnutri, a associação brasileira que representa os fabricantes.
Os complementos que prometem massa muscular, resistência e melhor performance vivem um paradoxo: o apogeu econômico, de imensa procura, e o escrutínio inédito (e necessário) da ciência e de nutricionistas, que alertam para os riscos do consumo indiscriminado. No Brasil, apenas neste ano, as marcas que anunciam promessas vãs foram alvo de 44 ações de suspensão, interdição e proibição estabelecidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
A suplementação, é bom lembrar, tem um componente cultural de adesão pela sociedade. Os brasileiros com mais de 40 anos podem, talvez, surpreender-se cantarolando o “bê-a-bá” do Biotônico Fontoura, símbolo de uma época em que abrir o apetite com uma colherada de suplemento de ferro parecia parte obrigatória da infância. Nos últimos anos, contudo, o negócio ficou muito mais complexo. Nas prateleiras, há produtos que precisam ser consumidos com muito cuidado e outros que não entregam nenhum benefício (veja no quadro). Entraram em cena os potes de whey protein, a creatina em pó, os multivitamínicos coloridos e os termogênicos para uma população jovem e fitness. O discurso gira em torno de “bater meta de proteína”, “crescer o shape” e, na definição mais sensata e palatável, “ter um estilo de vida saudável”.
A pandemia de covid-19 acelerou o apelo em torno dessas fórmulas. Em 2020, quase metade dos brasileiros disse ter aumentado o consumo de suplementos. E o hábito não só pegou como virou rotina: hoje, três em cada quatro pessoas declaram usar esses produtos, principalmente na faixa dos 30 a 49 anos, de acordo com levantamento do Instituto Locomotiva e NeoQuímica. Nessa guinada, o cumprimento da legislação que baliza as exigências de controle dos produtos, estabelecida em 2018, passou a ser acompanhado de perto. Na ponta do lápis, segundo a Anvisa: desde o início do período pandêmico até os dias de hoje, foram abertos exatos 1 574 dossiês de investigação na área de alimentos, dos quais 63% (990) eram direcionados aos suplementos.

No início de setembro entra em vigor a determinação de que todos os suplementos existentes no mercado estejam regularizados na agência mediante um procedimento de notificação, algo que hoje não ocorre. “A medida veio diante de uma necessidade de melhorar a regulamentação do setor e permitir ao sistema de vigilância sanitária uma atuação mais eficiente”, disse a Anvisa, em nota oficial. Crescem, portanto, as apreensões de produtos vendidos sem registro, com substâncias proibidas ou formulações fora da lei. No início deste ano, o órgão suspendeu a venda de uma versão de tapioca que continha creatina, uma formulação não permitida para itens dessa natureza. O uso de ingredientes não autorizados também esteve na mira de fiscalizações, culminando com a retirada do mercado de suplementos à base da planta ora-pro-nóbis. “A retirada de suplementos irregulares ou com substâncias não permitidas contribui para fortalecer a confiança no setor e valorizar as empresas que atuam dentro das regras”, diz Gislene Cardozo, diretora-executiva da Abiad, associação da indústria de alimentos para fins especiais. É um ótimo movimento.
Em um setor que cresce rápido e dá lucro — alimentado pelo discurso de práticas saudáveis, que frequentemente flerta com sugestões irresponsáveis de falsos resultados —, há atenção redobrada diante dos riscos de efeitos colaterais. Nenhum suplemento, insista-se, é inócuo e pode ser tomado de forma indiscriminada. “Não generalizar o uso é um grande passo, porque os suplementos podem trazer algum dano se o paciente não estiver bem orientado”, diz o médico nutrólogo Diogo Toledo, coordenador da pós-graduação de nutrologia do Einstein Hospital Israelita. A solução: a administração de forma personalizada, com o devido acompanhamento médico. “Um paciente com complicação renal precisa ter uma dose específica de proteína, como o whey. A vitamina D tem dosagem, porque pode causar intoxicação”, exemplifica Toledo. Mesmo a creatina, um dos suplementos mais estudados, relacionado à performance e cognição e de comprovado sucesso, tem indicação de uso diário não superior a 5 gramas, conforme o peso da pessoa, em decorrência de possíveis complicações renais e alterações no trato intestinal.
Com a profusão de informações nas redes sociais, a linha entre o uso adequado e o modismo fica cada vez mais borrada. O resultado: o total esquecimento dos reais objetivos da suplementação. “A função é suprir o que falta quando há deficiência comprovada”, diz a nutricionista Lara Natacci, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição. O nó é que hoje o consumo se espalhou sem orientação, porque “suplemento” virou sinônimo de saúde e bem-estar.

Mas vale lembrar que nem sempre a suplementação é necessária. Antes de a tecnologia da nutrição invadir farmácias, supermercados e outros estabelecimentos, a principal fórmula já estava estabelecida: ter uma alimentação saudável, rica em frutas, legumes, grãos integrais e proteínas de qualidade. Esse continua sendo o verdadeiro pilar do bom funcionamento do organismo. Um recente estudo da revista Nature mostra que as pessoas que recorrem com frequência a pós e cápsulas tendem a ter hábitos alimentares menos consistentes, como se os potes pudessem compensar a lacuna do prato. No fim das contas, os suplementos — especialmente os registrados e seguros — podem ser úteis em casos pontuais, mas o que vai no prato ainda é a melhor receita.
Publicado em VEJA de 22 de agosto de 2025, edição nº 2958