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Cristina Peri Rossi: “Deve haver algo de subversivo na literatura para deixar os ditadores nervosos”

A escritora uruguaia Cristina Peri Rossi, exilada durante a ditadura que teve obras proibidas no país, é considerada por muitos a única mulher do Boom Latino-Americano — movimento de autores como Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa e Julio Cortázar. Aos 83 anos e com um Prêmio Cervantes nas costas, finalmente tem traduções no Brasil para chamar de suas: a antologia poética Nossa Vingança é o Amor (Editora 34, tradução de Ayelén Medail e Cide Piquet) e o romance A Insubmissa (Bazar do Tempo, tradução de Anita Rivera Guerra).

1 – O que representa para a senhora ser traduzida no Brasil — um país de dimensões continentais? Fui traduzida para mais de vinte e cinco línguas, mas este lançamento me enche especialmente de emoção; reconheço que ser lida por leitores desse país me emociona mais do que ser lida por chineses ou japoneses, que por outro lado também são excelentes tradutores e editores. Mas o coração pende mais para o que está mais próximo. 

2 – A tradução é, por natureza, um ato arriscado. No caso da poesia, o desafio parece ainda maior: como traduzir não apenas o sentido, mas também a intenção, o ritmo? Eu mesma fui tradutora e conheço o fracasso parcial e certa desolação que o tradutor experimenta por alguma parte do texto original que sempre se perde. Daí a famosa frase “traduzir é trair”. Às vezes me irrito quando o tradutor ou a tradutora não consegue transmitir o lirismo de certas palavras, mas é necessário ser humilde e aceitar que a palavra melancolia, por exemplo, se escreve de maneira semelhante em diversas línguas e, em troca, outras palavras perdem parte de seu encanto.

3 – A senhora tem leitores fiéis no Brasil, mesmo diante da ascensão de forças conservadoras. A literatura resiste ao conservadorismo? No Uruguai, fiquei apátrida e fui silenciada quando nem sequer tinha um partido político. Mas conhecia muito bem a história das ditaduras em todo o mundo, de modo que decidi partir antes de terminar em um esgoto ou arremessada de um avião ao mar. Essa foi a decisão mais dolorosa de toda a minha vida. Mas os leitores sempre resistem. Escondem os livros debaixo da terra, em um porão. Ao longo da história queimaram-se livros ou foram proibidos, contudo, em outros casos, a lembrança de um poema acompanhou um condenado até o último momento. Deve haver algo de subversivo na literatura para deixar os ditadores nervosos.

4 – A sexualidade feminina e o desejo entre mulheres atravessam sua obra desde sempre. No entanto, vivemos hoje um recrudescimento global na agenda de direitos LGBTQIA+. Como a senhora se sente diante desse cenário? Meu primeiro livro de poemas Evohé foi um escândalo em meu país em 1971. Nunca havia pensado que fossem escandalizar tanto a sociedade uruguaia. Mais de 50 anos depois foi reeditado e se converteu em um emblema identificatório. Eu não pretendia tanto. Acreditei que certas verdades lidas na adolescência (por exemplo o discurso de Marcela em Dom Quixote de la Mancha, vários séculos antes) não irritavam o patriarcado. Sim, irritam. Confio que a força e especialmente a solidariedade do movimento LGBTQIA+ possam resistir aos embates da ultradireita no mundo, que parece sentir nostalgia dos campos de concentração e da falta de liberdade.

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5 – A condição de estrangeira se tornou, para sempre, parte de sua identidade? O estrangeiro é o outro, ainda que fale a mesma língua. Também posso ser estrangeira de um homem, dado que não compartilhamos o sexo e quase nunca os temas de interesse.

6 – Se tivesse que escolher uma única palavra para definir sua passagem pelo mundo, qual seria? Valentia. E como disse uma vez a escritora mexicana Elena Poniatowska: “Cristina Peri Rossi é a autora que corre mais riscos sem ter rede embaixo.”

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