As imagens circularam pelo país: uma jovem discute com o namorado dentro de um elevador. Segundos depois, ele parte para cima dela e desfere dezenas de socos seguidos no rosto. Chega a ultrapassar 60 golpes. Em vão ela tenta se protege Sai cambaleando, com o rosto deformado, deixando para trás o chinelo e as marcas da violência no chão. O vídeo choca pela brutalidade, pelo ódio explícito. Dias antes, um fisiculturista de 24 anos agrediu a namorada com tanta força que, além de mutilar suas feições, quebrou a própria mão. Pouco depois, um homem de 59 anos espancou a esposa até a morte e tentou convencer que ela havia sofrido convulsões.
Nos três casos, um padrão se repete: ciúmes doentios, acompanhado de agressões anteriores e o uso da força como linguagem íntima. Essas dinâmicas de violência masculina contra mulheres começam cedo. Como qualquer outro aprendizado, elas se formam pela repetição, pelo exemplo e pela recompensa. Um garoto pequeno observa — em casa, na rua, nas telas — que há certos “serviços” que ele pode esperar das meninas: afeto, validação, exclusividade, disponibilidade física e emocional, silêncio, admiração. No início, essa expectativa se apresenta inofensiva. No entanto se frustrada, converte-se em ira. A violência, nesse contexto, não surge como explosão incontrolável, mas como ferramenta reguladora, quase estratégica — usada para punir a recusa, retomar o controle, reafirmar um suposto “direito”. E o que se aprende cedo, não se desaprende fácil.
Antes de seguir, é importante lembrar que mulheres também praticam violência. Pesquisas brasileiras e internacionais apontam que, em relacionamentos íntimos, as agressões físicas ocorrem em índices semelhantes entre os sexos. Há mulheres que agridem parceiros, outras mulheres, filhos — e que recorrem, em muitos contextos, à violência psicológica e moral. O cyberbullying é um exemplo contemporâneo relevante, no qual a autoria feminina não é rara. A diferença decisiva está nas consequências: para as mulheres, elas tendem a ser muito mais graves. A força física média dos homens se traduz em números brutais. Em 2023, o Brasil registrou 1.453 feminicídios. No mundo, mais de 85 mil mulheres foram assassinadas — mais da metade por parceiros íntimos ou familiares. A violência letal quase nunca se inverte. No Brasil, em 2022, ocorreram 67 mil estupros contra mulheres — um a cada oito minutos.
Em gerações anteriores, comportamentos abusivos eram explícitos e socialmente tolerados. Ana Maria, por exemplo, casada há 45 anos, marcava as sessões de terapia de modo a poder estar em casa antes do marido chegar. Ele se irritava profundamente se ela não estivesse à sua espera, de preferência com a comida pronta. Se ele não saía de casa, ela também não podia sair. Já José, empresário de 63 anos, reunia amigos na chácara onde, invariavelmente, bebia e xingava a esposa, Clara. Chamava-a de burra, ridícula, ingrata — às vezes porque ela falava, e às vezes porque ela não falava. Os amigos não intercediam. O abuso era público, e seguiu por anos. O que vemos hoje são versões atualizadas — e por vezes mais sutis — desse mesmo script.
Hoje, as regras do jogo mudaram, mas a essência permanece. O que antes se via à luz do dia agora muitas vezes acontece de forma disfarçada, silenciosa e privada. Muito antes de chegar ao soco, existe um processo de desgaste contínuo, construído dia após dia, com palavras, olhares, restrições e ameaças veladas. O Power and Control Wheel, desenvolvido nos anos 1980 por educadores e especialistas em violência doméstica, descreve isso com precisão: a agressão física é apenas um elemento de um repertório mais amplo de dominação. Nele entram o isolamento social, a intimidação psicológica, a manipulação emocional, o controle financeiro, o uso calculado da culpa ou dos filhos — e também o minimizing, denying and blaming: reduzir a gravidade do que aconteceu, negar que houve abuso ou inverter a responsabilidade, colocando a culpa na vítima.
Abusadores “modernos” — que muitas vezes passam longe do estereótipo popular do agressor — recorrem a versões mais sutis desse mesmo mecanismo. Frequentemente não levantam a mão, mas minam silenciosamente a autoestima e a autonomia da parceira. A arquiteta de 35 anos cujo marido dizia que o corpo dela era “de uma mulher muito mais velha” e que portanto não atrairia mais ninguém; não a agredia, mas mantinha no ar a intimidação, criando nela um estado permanente de insegurança. A médica que convivia com o ciúme explícito do marido — não apenas pelos homens reais, mas também pelos imaginários, supostos colegas ou clientes que ele acusava de serem “ameaças” à relação. Na avaliação dele, ela estava “destruindo a família”. A empresária que, por trabalhar muitas horas, ouvia do marido que era “uma péssima mãe” — frase cirurgicamente escolhida porque ele sabia das dificuldades que ela tinha tido com a própria mãe. Ou a professora cujo marido, aproveitando-se do fato de ela estar em tratamento para depressão e ansiedade, invalidava sistematicamente suas opiniões, insinuando que as compreendia e tolerava generosamente, apesar de ela ser “louca”.
Há uma parcela desses abusadores cuja agressividade recai exclusivamente sobre a parceira, o que facilita a narrativa de que “apenas aquela mulher” os faz agir assim. Fora de casa, são atenciosos com amigos, educados com colegas, solícitos com vizinhos — e isso reforça a ilusão de que a culpa é dela. Mas a verdade é que abusar da parceira não é reação inevitável ao “comportamento dela”: é a incapacidade de lidar com os desafios emocionais, afetivos e de poder que surgem na relação mais íntima que tem. Por isso, mais do que amor, atração ou compatibilidade, é essencial perceber — desde o início — se há admiração e respeito genuínos. Respeito à personalidade, à profissão, aos objetivos de vida, à essência da outra pessoa. Sem isso, não há relação que se sustente.
Entender a violência masculina exige encarar, sem filtros, que muitos meninos ainda crescem aprendendo que mulheres estão ali para servi-los — não para caminhar ao lado deles. Por outro lado, não se deve cair no erro de justificar ou “compreender” os desacertos pintando todos os homens como vilões universais, como se fossem, por natureza, frágeis, incapazes ou moralmente defeituosos. “É homem… vai esperar o que dele?”. Essa narrativa, embora sedutora pelo alívio rápido que oferece, distorce a perspectiva. Quando tratamos metade da população como um bloco único, certamente perdemos a chance de mudar algo de fato.
Essa simplificação fica ainda mais perigosa quando olhamos para meninos e adolescentes que crescem em meio a mensagens confusas sobre o que significa “ser homem”. Muitos se sentem sem lugar na sociedade, como se qualquer traço masculino fosse automaticamente uma ameaça. Ainda assim, quero encerrar com esperança — porque ela é real. Masculinidade não é sinônimo de violência. Homens podem ser firmes sem agredir, proteger sem controlar, liderar sem humilhar, afirmar-se sem sufocar. Isso se aprende com treino, exemplo e prática — como qualquer outra habilidade humana. Sim, homens ainda cometem as formas mais brutais de violência. Muitos foram — e continuam sendo — educados para ver mulheres como inferiores, propriedade ou ameaça, o que envenena relações todos os dias. Mas não é algo inevitável. A cada dia, mais homens mostram que pode ser diferente: constroem relações de igualdade e respeito e incentivam outros a fazer o mesmo.
* Ilana Pinsky é psicóloga clínica e doutora pela Unifesp. É autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto), entre outros livros. Foi consultora da OMS e da OPAS e professora da Universidade Colúmbia. Siga a colunista no Instagram: @ilanapinsky_