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Reserva Michelin: como uma área degradada na Bahia virou símbolo de restauração da Mata Atlântica

A Bahia tem o coração verde. No sul do estado, a floresta pulsa sob o dossel denso da Mata Atlântica. Seringueiras centenárias dividem espaço com jequitibás imensos, bromélias pendem como pingentes e riachos serpenteiam devagar. É nesse pedaço, escondido entre os municípios de Igrapiúna e Ituberá, que a natureza resiste. Não por milagre, mas por esforço humano. Criada no coração de antigos seringais, a Reserva Ecológica Michelin é mais do que um refúgio.

Trata-se de um experimento vivo de reconciliação entre economia e floresta. Em vez de expandir monoculturas ou substituir o verde por pasto, a multinacional francesa do setor automotivo optou por restaurar ecossistemas, incentivar a pesquisa científica e envolver comunidades locais na preservação ambiental. O resultado é uma área protegida onde mais de 2 700 espécies da fauna e flora já foram catalogadas, algumas, inéditas para a ciência, e onde a natureza, ao invés de recuar, avança.

A decisão de criar a Reserva Ecológica nasceu do encontro entre responsabilidade corporativa e urgência ambiental. Instalada no sul da Bahia desde os anos 1980 para garantir o fornecimento de borracha natural, essencial à produção de pneus, a Michelin identificou a oportunidade de transformar terras à beira do colapso ambiental numa área de proteção.

O projeto saiu do papel em 2004, no auge das discussões sobre sustentabilidade e do avanço do desmatamento na Mata Atlântica. Desde então, cerca de 4000 hectares foram isolados para conservação permanente. A região foi escolhida não apenas por abrigar remanescentes florestais significativos, mas por estar inserida em um dos maiores corredores ecológicos do país, o Corredor Central da Mata Atlântica. 

A reportagem visitou o local como parte da Expedição VEJA, que está rodando o Brasil para conhecer projetos inovadores de sustentabilidade e destacar temas relacionados à agenda da COP30, a Conferência do Clima da ONU que acontecerá em novembro em Belém, no Pará.

Trecho de mata fechada na Reserva Ecológica Michelin, onde cipós centenários se entrelaçam entre árvores de grande porte. A área abriga uma das maiores biodiversidades do planeta, com até 450 espécies de árvores por hectare
Trecho de mata fechada na Reserva Ecológica Michelin, onde cipós centenários se entrelaçam entre árvores de grande porte. A área abriga uma das maiores biodiversidades do planeta, com até 450 espécies de árvores por hectareClaudio Gatti/VEJA

Além disso, a reserva conecta fragmentos de vegetação nativa e abriga nascentes que alimentam bacias hidrográficas da região, cumprindo um papel estratégico para a biodiversidade e para a qualidade de vida das comunidades vizinhas. “Em regiões como a Europa e os Estados Unidos, o frio intenso e as glaciações limitaram a evolução e acabaram eliminando muitas espécies ao longo do tempo”, diz Kevin Flesher, especialista em Ecologia e Evolução e diretor da reservaJá no sul da Bahia, o calor e a disponibilidade de água se mantêm há cerca de 100 milhões de anos. Esse clima estável permitiu que a vida continuasse se diversificando sem grandes interrupções. “Essa Mata Atlântica abriga uma biodiversidade única, comparável a pouquíssimos lugares do mundo”, explica.

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Quando a reserva foi criada, em 2004, o cenário encontrado estava longe do paraíso ecológico que se vê hoje. A área havia passado por décadas de exploração agrícola e extrativista, com trechos completamente degradados, fauna escassa e sinais claros de desequilíbrio ambiental. Era preciso recomeçar do zero: reflorestar grandes extensões, conter a caça ilegal, restaurar nascentes e preparar o solo para receber novamente espécies nativas. “O lugar estava exaurido. O impacto humano havia sido muito forte. Praticamente não se encontravam mais árvores grandes, nem bichos. A floresta estava praticamente morta. Era um silêncio só”, lembra Flesher, que dirige a reserva desde seu início. 

Kevin Flesher, diretor da Reserva Ecológica Michelin, observa a Cachoeira da Pancada Grande, um dos principais atrativos naturais da área protegida no sul da Bahia
Kevin Flesher, diretor da Reserva Ecológica Michelin, observa a Cachoeira da Pancada Grande, um dos principais atrativos naturais da área protegida no sul da BahiaClaudio Gatti/VEJA

Foi a partir desse diagnóstico que teve início um amplo processo de restauração ecológica, que hoje serve de referência internacional para projetos de conservação. Mais de 115 000 mudas de cerca de 340 espécies nativas já foram plantadas, a maior parte cultivada em viveiros próprios da reserva. Com o tempo, os sinais de regeneração começaram a se tornar visíveis e audíveis. O silêncio que antes dominava a mata deu lugar ao canto das aves, ao farfalhar de macacos nas copas e ao rastro discreto de mamíferos que voltaram a habitar a região.

O fortalecimento da vigilância ambiental, com o patrulhamento regular de guardas e o combate à caça ilegal, foi essencial para garantir esse retorno. Monitoramentos realizados ao longo de duas décadas indicam um aumento de 117% na população de mamíferos e aves, especialmente entre espécies ameaçadas de extinção. Hoje, a reserva é lar de antas, jacutingas, macacos-pregos, gatos-mouriscos e até imponentes suçuaranas, onças-pardas que antes estavam praticamente extintas. “A floresta respondeu”, resume Kevin Flesher. “Com proteção e tempo, os bichos voltaram.”

Allana Martins, administradora da reserva, verifica o viveiro de mudas
Allana Martins, administradora da reserva, verifica o viveiro de mudasClaudio Gatti/VEJA
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Engana-se, porém, quem pensa ser preciso isolar a reserva para preservá-la. Há forte ecoturismo em parte de sua área, sendo a Cachoeira da Pancada Grande alvo de 85 000 visitantes por ano. Ao mesmo tempo, programas educacionais envolvem moradores da região, enquanto pesquisadores de diversos países chegam aqui atraídos pela riqueza ecológica.

Boa parte do que se sabe hoje sobre o funcionamento da Mata Atlântica no sul da Bahia veio de dentro da reserva. A área oferece condições ideais para estudos de longo prazo, algo raro em biomas tropicais. Ali, cientistas monitoram o crescimento de árvores, a dispersão de sementes, a presença de polinizadores, a regeneração de clareiras e o comportamento de mamíferos em ambientes restaurados. O banco de dados acumulado ao longo de duas décadas permite identificar padrões que seriam invisíveis em pesquisas pontuais.

O lugar costuma receber em média 100 cientistas por ano. E até aqui, contabilizam-se 149 projetos de pesquisa. Entre os resultados mais impressionantes estão as descobertas de espécies até então desconhecidas pela ciência. Desde 2004, ao menos 39 novas espécies foram descritas a partir de exemplares encontrados na área, incluindo sapos, bromélias, fungos, formigas e besouros. Algumas delas são consideradas microendêmicas, ou seja, só existem ali.

Há casos de espécies que passaram despercebidas por séculos, mesmo em um bioma tão estudado como a Mata Atlântica. “O que isso nos diz é que ainda sabemos muito pouco sobre a biodiversidade brasileira”, explica Allana Martins, administradora do local. “E que conservar essas áreas não é só importante, é urgente.” A riqueza biológica encontrada surpreende até mesmo especialistas experientes. Em um único hectare da reserva, por exemplo, são registradas até 450 espécies de árvores, número equivalente ao que se encontra em toda a Europa.

“É possível estudar processos ecológicos em tempo real, com profundidade e controle, o que seria impossível em áreas fragmentadas ou sob risco constante de desmatamento”, diz Allana. A reserva também mantém uma base de pesquisa equipada com alojamento, laboratório e biblioteca, facilitando o intercâmbio com universidades e instituições científicas. Mais do que um centro de estudos, a floresta funciona como um organismo em observação contínua, revelando, em cada detalhe, a complexidade de um dos ecossistemas mais ricos e ameaçados do planeta.

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Extração de látex em seringueira da Reserva Ecológica: pesquisa descobriu linhagens mais resistente às pragas
Extração de látex em seringueira da Reserva Ecológica: pesquisa descobriu linhagens mais resistente às pragasClaudio Gatti/VEJA
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Além de estudar a floresta nativa, a equipe da reserva também investiga o cultivo sustentável da seringueira (Hevea brasiliensis), árvore fundamental para a produção de borracha natural, insumo vital para a Michelin. Dentro da área protegida, cientistas monitoram a saúde das plantações, avaliam a diversidade genética das árvores e testam métodos de manejo que reduzam o impacto ambiental e aumentem a resiliência das espécies ao longo do tempo.

Os estudos também analisam a convivência entre seringais e espécies nativas, como forma de enriquecer áreas já plantadas e evitar monoculturas empobrecidas. O conhecimento gerado no campo alimenta práticas adotadas nas fazendas da própria empresa e também pode beneficiar pequenos produtores da região. Nesse sentido, a reserva funciona como uma ponte entre ciência e negócio, mostrando que é possível alinhar rentabilidade e regeneração florestal no mesmo território.

Alunos do projeto Casa Familiar Rural, da Michelin: formação técnica e conexão com a floresta
Alunos do projeto Casa Familiar Rural, da Michelin: formação técnica e conexão com a florestaClaudio Gatti/VEJA

Para além dos limites da mata, a reserva também atua sobre o território humano. Cerca de 2.500 pessoas vivem no entorno imediato da área protegida, em comunidades rurais que historicamente conviveram com o extrativismo, o desmatamento e a baixa oferta de serviços públicos. Desde a criação do projeto, a Michelin investe em iniciativas de educação ambiental voltadas para escolas da região, com trilhas guiadas, atividades práticas e formação de professores.

O objetivo é simples e ambicioso: reconectar as pessoas à floresta, não como ameaça ou obstáculo, mas como parte do seu cotidiano e identidade. Crianças aprendem a reconhecer sons de aves, identificar espécies de árvores e entender o papel dos ecossistemas na qualidade da água que chega às suas casas. O projeto também oferece cursos, oficinas e visitas técnicas para jovens e adultos.

“O conhecimento transforma o olhar”, diz Tarcísio Botelho, coordenador do programa socioambiental. “A população passa a valorizar a mata depois de conhecê-la de verdade.” Ao criar pontes entre ciência e vivência local, a reserva semeia um senso de pertencimento essencial para a conservação duradoura.

Em tempos de colapso climático e avanço acelerado sobre os biomas, a Reserva Ecológica Michelin oferece um raro contraponto: um lugar onde a floresta não apenas resiste, mas renasce. Cada árvore plantada, cada espécie redescoberta, cada criança que aprende o nome de um pássaro é um gesto de reconstrução. No coração da Bahia, entre cipós centenários e cachoeiras em queda livre, a natureza ensaia sua própria resposta: quando há cuidado, o tempo se alia à vida. E a floresta volta a cantar.

Alunas do programa educacional aprendem a fazer chocolate orgânico com cacau colhido na região: conexão com a terra traz orgulho e consciência
Alunas do programa educacional aprendem a fazer chocolate orgânico com cacau colhido na região: conexão com a terra traz orgulho e consciênciaClaudio Gatti/VEJA
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