O Rio Innovation Week, que começa amanhã no Píer Mauá, vai receber um convidado que promete mexer não apenas com a cena de tecnologia, mas também com o sempre acalorado debate sobre a presença da inteligência artificial nas artes. O pesquisador chinês Kang Zhang, um dos nomes mais influentes da estética computacional, desembarca na cidade para apresentar dois projetos que misturam referências artísticas do Oriente e do Ocidente por meio de algoritmos. Professor e diretor do Departamento de Arte e Mídia Computacionais da Universidade de Ciência e Tecnologia de Hong Kong, Zhang combina tradição e vanguarda em experiências visuais que intrigam tanto programadores quanto curadores. No primeiro projeto, ele coloca frente a frente dois gigantes das artes: Wassily Kandinsky (1866-1944), pioneiro da abstração geométrica no Ocidente, e Wu Guanzhong (1919-2010), figura central da arte chinesa moderna.
O segundo trabalho leva o diálogo mais longe. Zhang aproxima o Dongba Script (sistema de escrita pictográfica do povo Naxi, na China, e patrimônio da Unesco) com as obras do surrealista espanhol Joan Miró (1893-1993) . O resultado são composições que atravessam séculos e continentes, mas nascem do processamento de dados e da interpretação visual de uma máquina. É aí que mora a polêmica.
Zhang, que também é professor da Universidade do Texas, em Dallas, e figura entre os 2% de cientistas mais influentes do mundo segundo a Universidade de Stanford, prefere ver a IA como extensão do olhar humano. Com mais de 120 artigos e oito livros publicados em estética computacional, linguagens visuais e arte generativa, ele defende que a tecnologia pode preservar e reinventar legados artísticos.
Para falar sobre o tema, o pesquisador fala com exclusividade para a coluna Giro pelo Oriente:
Para quem está começando a se aproximar desse campo de arte generativa, como o senhor descreveria, em termos simples, o que exatamente move suas pesquisas? A estética computacional busca responder: “Como o computador pode gerar automaticamente expressões visuais esteticamente atraentes?” Isso inclui arte generativa, design generativo e medição estética. Minha pesquisa anterior com linguagens visuais estava relacionada a linguagens de programação visual, que permitem programação por diagramas. De modo geral, linguagens visuais são formas de comunicação não textuais (como imagens, em vez de áudio ou texto), aplicáveis em diversas áreas .
O que o senhor pretende destacar em sua participação no Rio Innovation Week? Quero enfatizar que a apreciação estética é universal, transcendendo culturas e continentes, e que a fusão entre arte oriental e ocidental pode ser ainda mais impactante do que cada uma isoladamente.
Por que o senhor escolheu Kandinsky e Wu Guanzhong? Ambos são mestres no uso de cores, pontos, linhas e planos. Kandinsky foi influente no Ocidente (especialmente no Bauhaus), enquanto Wu Guanzhong marcou a arte e o design na China (sua influência cresceu ainda mais após sua morte, em 2010). Estudei o estilo de Kandinsky para arte generativa e as pinturas de Wu para medição estética, publicando em diversos veículos, como a Leonardo (MIT Press).
Há momentos em que a máquina ultrapassa o que seria culturalmente apropriado? Neste projeto, não busquei preservar a cultura original de nenhum estilo, mas sim gerar elementos visuais sem significado semântico. A IA atua como uma fusão mecânica, baseada no que treinamos. Sobre a IA respeitar ou transgredir fronteiras culturais, há uma necessidade urgente de treinar modelos com ênfase em elementos locais. Atualmente, os modelos de IA e LLMs são majoritariamente baseados em culturas ocidentais.
Que tipo de diálogo o senhor busca provocar ao integrar Dongba Script com o surrealismo de Miró? O Dongba Script é a única linguagem pictográfica ainda em uso e é patrimônio da Unesco. Ele tem semelhanças com o surrealismo de Miró, ambos evocando constelações, universo e natureza. A obra de Miró também é lúdica e decorativa, ideal para expressões artísticas e de design.
À medida que a inteligência artificial se torna mais participativa no processo criativo, o senhor acredita que estamos nos aproximando de uma estética não-humana?A IA reflete, de forma inevitável, a sensibilidade de seus programadores? Formado em engenharia e ciência da computação, vejo a IA não como criativa por si só, mas como uma extensão da capacidade humana. Ela já gera obras esteticamente indistinguíveis das humanas, mas ainda depende de nossa orientação.
Como o senhor enxerga a questão da autoria em obras geradas por IA que partem de estilos consagrados, como Kandinsky e Miró? Há um limite ético entre homenagem e apropriação, mesmo que mediada por algoritmos? Acredito que é ético usar a IA para aprender e recriar estilos artísticos. É uma forma de preservar e difundir legados. É como uma linguagem: a IA aprende o “vocabulário visual” de Kandinsky e gera “frases” em 2D ou 3D. Quem conhece seu estilo reconhecerá a influência. Assim como um programa em C tem um autor (o programador), a IA e seu usuário são coautores das imagens geradas. No meu caso, instruí a IA a aprender sistematicamente as formas e cores de Kandinsky para criar composições originais com esses elementos.
Em um cenário onde a IA já começa a imitar estilos consagrados, o que, para o senhor, ainda diferencia a arte feita por humanos daquela feita por algoritmos? A originalidade está no processo, no resultado ou na intenção? Como mencionado, hoje já é quase impossível distingui-las. A originalidade está no processo criativo do artista humano.
O senhor vê espaço para a IA atuar como uma ponte cultural, capaz de promover o intercâmbio artístico entre tradições distintas? A arte já é uma linguagem universal. A IA, quando usada em coautoria com humanos, pode naturalmente fundir estilos orientais e ocidentais.
O senhor acredita que a IA pode aprender, de alguma forma, a estética ou apenas a simular aquilo que os humanos consideram belo? Ainda não. A IA atual apenas reproduz padrões de beleza definidos por nós.
Em sua experiência com linguagens visuais, quais elementos são mais difíceis de traduzir para a IA? Emoção, contexto histórico, simbologia cultural? O processo criativo humano é o mais complexo de codificar – especialmente emoção e noções subjetivas de beleza (tema da minha pesquisa em medição estética). Já o contexto histórico e cultural podem, em parte, ser incorporados a uma linguagem visual.