Pesquisadores brasileiros, em parceria com instituições francesas, conseguiram desenvolver uma ferramenta capaz de prever se um paciente responderá de forma positiva ao tratamento de esclerose múltipla com um dos medicamentos mais usados atualmente, o natalizumabe.
Apesar da eficácia do fármaco, cerca de 35% dos usuários não respondem completamente à terapia ou registram a volta dos sintomas dois anos após o início do uso. Além disso, mesmo ajudando a reduzir a frequência e a gravidade dos surtos e retardar a progressão da doença, pode provocar uma série de reações adversas, como aumento do risco de uma infecção grave (leucoencefalopatia multifocal progressiva), dores de cabeça, muscular e de estômago, fadiga e depressão.
Usando uma metodologia inovadora, o grupo de cientistas obteve um importante avanço em medicina de precisão, permitindo que, no futuro, pacientes tenham melhor qualidade de vida com tratamentos direcionados – menos efeitos colaterais e resultados positivos em prazos mais curtos –, além da redução de custos para a rede pública. O natalizumabe, um anticorpo monoclonal, é fornecido no Brasil pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e custa, em média, R$ 10 mil mensais por paciente.
O medicamento atua como um anticorpo que bloqueia a ligação de uma proteína do sistema imunológico, a VLA-4, com outra molécula chamada VCAM-1, impedindo que células imunes entrem no cérebro e provoquem inflamação. Após o tratamento, células do sistema imune, como as T CD8+, tornam-se mais arredondadas. Essa mudança está ligada a uma remodelação da actina, uma proteína cuja principal função é promover a sustentação celular, mas também desempenha papel no movimento, forma e interação das células com outras e com o meio ao redor.
A partir de dados obtidos por imagens de células de alto conteúdo (HCI na sigla em inglês para high content imaging), os cientistas descobriram que o resultado desfavorável ao tratamento com natalizumabe está associado a uma resposta distinta de remodelação da actina das células T CD8+ e a uma capacidade de elas se alongarem mesmo sob efeito do fármaco. A morfologia da célula muda e fica mais disforme e longitudinal. Os achados estão publicados na revista Nature Communications.
“Os resultados são importantes porque podem contribuir para uma melhora na qualidade de vida dos pacientes, evitando efeitos colaterais desnecessários e atraso no tratamento, além de otimização dos gastos, como no caso do SUS no Brasil”, diz à Agência Fapesp a primeira autora do artigo, Beatriz Chaves, atualmente pesquisadora do Instituto de Doenças Infecciosas e Inflamatórias de Toulouse (INFINITy), na França, mas que estuda esclerose múltipla há anos na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Ceará.
O que é esclerose múltipla?
Doença neurológica autoimune, inflamatória e degenerativa, a esclerose múltipla afeta o sistema nervoso central, levando a distúrbios motores, cognitivos e mentais. Entre os sintomas estão desde a perda da força muscular e dificuldade para andar até problemas de memória, de atenção e alterações de humor.
Estima-se que 2,8 milhões de pessoas têm a doença no mundo, sendo cerca de 40 mil no Brasil. A maioria dos diagnósticos é de adultos jovens, com idade entre 20 e 50 anos, com ocorrência em mulheres duas a três vezes maior do que em homens. Desde 2014, o “Agosto Laranja” marca o mês de conscientização sobre a doença.
Desvendando o sistema
As imagens de células de alto conteúdo combinam uma tecnologia avançada de microscopia à análise automatizada de imagem, conseguindo extrair múltiplas informações por célula, como forma e tamanho; distribuição de organelas; localização de proteínas; resposta a fármacos e perturbações genéticas. A HCI tem sido mais usada para estudos sobre câncer.
A adoção desse tipo de análise foi um avanço em relação a outras pesquisas com foco em medicina personalizada que, geralmente, utilizam abordagens de citometria (análise de características físicas e químicas de células), de sorologia ou transcriptômica (avalia como a informação contida no DNA é transcrita em RNA e, posteriormente, utilizada para produzir proteínas e outras moléculas funcionais).
No estudo, os pesquisadores começaram aplicando natalizumabe in vitro sobre células sanguíneas, incluindo as T, de pacientes com esclerose múltipla ainda não tratados com o medicamento. As células foram estimuladas via VLA‑4 e semeadas em placas revestidas de VCAM‑1. As amostras eram de indivíduos ligados a instituições da França.
Foram extraídas mais de 400 características do perfil morfológico, como área, razão largura/comprimento, organização de actina e outros, das quais 130 apresentaram algum tipo de informação relevante para a pesquisa. A partir daí, usando aprendizado de máquina, os pesquisadores fizeram mais de 1 milhão de combinações.
O estudo alcançou 92% de acurácia na coorte de descoberta e 88% na de validação para predizer resposta clínica ao tratamento com natalizumabe, sendo as T CD8+ as células que se mostraram como uma subpopulação relevante para essa predição. Os pacientes não respondentes apresentaram um perfil de remodelamento de actina mais resistente, com menor perda de polaridade e maior capacidade de migração, sugerindo que a manutenção do estado migratório das T CD8+ pode comprometer a eficácia.
“O projeto é superinteressante e inovador. A grande sacada foi pegar a imagem, transformá-la em números e usar essa tabela no aprendizado de máquina. Tenho certeza de que agora será possível replicar esse tipo de abordagem para outras doenças e tratamentos”, avalia o pesquisador sênior do Hospital Israelita Albert Einstein e professor da Universidade de São Paulo (USP) Helder Nakaya, também autor do artigo.
Nakaya e Juan Carlo Santos e Silva, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (FCF-USP), trabalharam na modelagem e desenvolvimento do aprendizado de máquina. Ambos recebem apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
O que esperar
Tanto Chaves como Nakaya afirmaram à Agência FAPESP que pretendem continuar usando a metodologia e buscando validar os resultados com bases maiores de amostras.
“Agora buscaremos formas de testar com um maior número de pacientes, incluindo de outros países e regiões. Outro caminho é deixar o marcador de morfologia mais acessível, com possibilidade de uso com equipamentos mais simples e baratos. Há ainda a possibilidade de aplicar a metodologia para outras doenças, como já está fazendo uma colega ao estudar a terapia CAR-T contra câncer”, antecipa Chaves.