Desde as primeiras semanas da pandemia de Covid-19, o cantor e compositor carioca Cícero Lins não divulga músicas inéditas. Frustrado pela crise global, teve que engavetar planos de divulgação do disco que lançava na época, Cosmo, e encarar um mundo que virava do avesso não só fora de sua casa, mas também dentro. Nos últimos cinco anos, ele perdeu entes queridos, encerrou um relacionamento, mudou de casa, entrou em turnê e foi se aproximando cada vez mais dos 40 anos, que completará em abril de 2026. Apesar de transformadoras, as experiências não pareciam exatamente coesas — daí surgiu a ideia de juntá-las como cacos no disco Uma Onda em Pedaços, chegado às plataformas digitais às 19h de quarta-feira, 6. Os sentimentos multifacetados são capturados por uma paleta sonora eclética, em faixas como Meu Amigo Harvey, que embala um sample de Johannes Brahms em groove urbano, ou Tranquilo, que rejeita palavras. Em entrevista a VEJA, o músico discutiu as inspirações por trás da obra, suas observações sobre a cena da música alternativa e seus planos para a nova fase:
O quanto a experiência da pandemia afetou o seu processo artístico e influenciou o disco? O que mais influenciou o resultado foi esse tempo que eu fiquei sem gravar, de 2020 até 2025. Eu comecei a criar discos em 2004, com 17 anos, e fui gravando de dois em dois anos até a pandemia. Organizava a vida em álbuns. Nesse mesma pausa, muita coisa aconteceu na vida. O álbum começou a fazer sentido como uma ilustração disso, de que eu havia sido quebrado em muitos pedaços.
A pausa foi premeditada ou espontânea? Foi acidental. Lancei Cosmo em 2020, em março. Estava planejado desde 2019 e calhou dele sair no dia do lockdown. A turnê foi cancelada, obviamente, e nos dois anos que se seguiram, morreram pessoas muito importantes na minha vida, outras adoeceram e minha rotina virou do avesso. Eu morava em Portugal e nunca mais voltei, tinha um relacionamento lá, morava junto, tudo acabou, e aí eu fiquei de 2022 a 2025 tentando me reorganizar. Um pedaço da vida é a carreira, um pedaço é a minha família, um pedaço é a minha saúde, por aí vai. Entendendo aquela fase, achei beleza em falar disso por meio de um álbum.
Nesse meio-tempo, ganharam força outros nomes da música alternativa brasileira, como Ana Frango Elétrico, Sophia Chablau e Zé Ibarra. Como você avalia o ecossistema nacional no momento? Falando desse recorte em específico, os amo porque são amigos, estão todos sempre aqui em casa. O Ibarra chegou a cantar nesse álbum, mas mudei a letra num ponto importante e não consegui encontrá-lo para gravar de novo. Conheço Ana Frango há muito tempo, e o Vovô Bebê, que canta comigo com Tranquilo, produziu as primeiras coisas dela. Mas sei também que a cena é muito maior do que isso. Existe uma galera do piseiro alternativo no Nordeste, outra que faz rap doideira no subúrbio do Rio, outra no Sul…
Existe alguma mudança no meio que o desagrade? Me incomoda como a internet favorece quem se comunica melhor com os algoritmos, o que não é necessariamente mérito artístico. É comum ver quem faça um som muito bom, mas não tenha muitos plays no Spotify. Sinto isso também nas minhas redes sociais — como quase não posto, não chego àqueles números enormes de seguidores e de reproduções que se convertem em shows de grande público. O mundo real e o virtual são intrínsecos hoje em dia. Acaba que quem não tem traquejo para o eu virtual, não é beneficiado no real — mas acho que é algo que ainda vai se resolver. É só um momento no qual a comunicação está confusa.
Você disse em 2020 não gostar muito do termo Nova MPB. Essa aversão ao rótulo continua? Não é muito bem aversão. É mais um respeito ao que fica implicitamente taxado de velho. Parece que se está envelhecendo o que veio antes, sendo que não vejo música desse jeito. Posso ouvir uma parada de 1890 que é super moderna e não parece ter sido escrita há 130 anos. Agora, quanto à “Nova MPB”, acho bonito o recorte brasileiro. O termo também me faz pensar em outros casos, como quando surgiu o nu metal e a galera do metal ficou chateada. Com a passagem do tempo, o “nu” deixou de significar “novo” e passou a descrever um estilo atrelado a uma época e a um espaço. Por conta disso, essa ideia já não me incomoda tanto.
Um dos momentos mais surpreendentes do disco é o rap de Mente Voa. A quebra de expectativa é algo planejado ou natural? É espontâneo. Em Mente Voa, a premissa era me entregar ao fluxo de pensamento. Normalmente, escrevo sem limites e depois faço o exercício de reduzir a letra ao mínimo essencial, mas me permiti preservar um texto grande e recitá-lo rápido, em síncope, como um rap — que é um gênero que ouço desde moleque. Acho interessante que o disco tenha um rap, tenha música em inglês e tenha até uma música em idioma nenhum. É um álbum que desbloqueou muitos caminhos para mim.
Lucille é sua primeira composição em inglês. Por que quis compor na língua? Algumas músicas, ao longo da vida, eu fiz em inglês por causa dos fonemas, por causa daquela coisa de ter feito cursinho de inglês ainda criança e ter ouvido muita música em inglês. Acaba que esse fonema tem o seu valor estético e depois eu traduzia. Nesse disco, deixei duas na língua original. Uma é Lucille, porque não gostei de nenhuma versão em português. Acho que a beleza foi uma bússola do disco. Tanto que a outra em “inglês”, Tranquilo, na verdade não está em idioma algum. Queria evocar a sensação de ouvir uma música que parece bonita para caramba sem saber o que ela está falando, como quando se é criança ou quando não se sabe a língua. É uma outra compreensão, uma sensação que não necessariamente é menor daquela que existe numa letra decifrável.
Os instrumentais do disco vão de um ar sinfônico ao minimalista. Como planeja conciliar as faixas na turnê que iniciará em outubro? Estou começando a pensar nisso agora. Por enquanto, ainda estou finalizando os vídeos e as artes gráficas. Em breve, começo a me debruçar sobre o show. Sei que quero algumas coisas. Gostei de tocar com uma orquestra projetada na turnê Concerto 1, mas também adoro a escola de guitarra, baixo e bateria de banda que ouvi na minha adolescência de fã do Nirvana. Quero encontrar um ponto no qual as duas coisas funcionem.
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