Partículas de plástico já foram encontradas no cérebro humano, em artérias, placentas, cordões umbilicais, fígados, rins, pulmões e testículos. Também há evidências de que estão circulando no nosso sangue. A cada novo estudo científico, a onipresença desses resíduos ganha contornos mais preocupantes: se antes o plástico era considerado principalmente um problema ambiental, acumulando-se nas praias ou em ilhas flutuantes nos oceanos, agora ele está dentro de nós — e pode prejudicar também nossa saúde.
Um estudo publicado em 2024 no New England Journal of Medicine detectou plásticos em placas ateroscleróticas removidas de artérias carótidas. A presença dessas partículas foi associada a um risco maior de infarto, acidente vascular cerebral (AVC) ou morte em um período de 34 meses, em comparação a pacientes cujas placas estavam livres de plástico.
Já um trabalho publicado em fevereiro na Nature medicine confirmou a presença de microplásticos em cérebros, rins e fígados de cadáveres. As partículas foram encontradas em todos os tecidos cerebrais analisados, com predominância do polietileno, material de sacolas plásticas e embalagens de alimentos.
“A situação está em um ponto muito crítico, porque já passou de uma poluição externa, de vermos plástico espalhado por todo lugar e principalmente nos oceanos. Agora também é algo que está dentro de todos nós”, resume a enfermeira Lis Leão, pesquisadora sênior do Centro de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, do Einstein Hospital Israelita, e editora do livro Natureza, Clima e Saúde Pública (2024).
O alerta também vem da Organização Mundial da Saúde (OMS): embora reconheça que as evidências sobre os riscos ainda são limitadas, a entidade classifica os microplásticos como contaminantes emergentes e recomenda mais pesquisas, além de medidas para reduzir a exposição. Em 2022, a OMS reforçou a necessidade de monitoramento contínuo e advertiu que, mesmo sem comprovação direta de danos à saúde, o simples fato de essas partículas estarem sendo detectadas em órgãos humanos é motivo suficiente para preocupação.
A médica patologista Thais Mauad, professora da Universidade de São Paulo (USP), compartilha dessa preocupação e diz imaginar que não exista um ser humano sem plástico circulando no corpo. “Acredito que todo mundo que esteja em meio urbano, que tenha contato com alimentos, que compra comida nos mercados, está comendo plástico”, afirma.
Mauad é coautora de uma pesquisa publicada em setembro de 2024 no Jama Network Open que encontrou microplásticos no bulbo olfatório, parte do cérebro responsável por detectar cheiros, em cadáveres de pessoas que viveram por pelo menos cinco anos na cidade de São Paulo. Em cada fragmento de tecido analisado, foram encontradas de uma a quatro partículas de plástico com dimensões entre 5,5 micrômetros (µm) e 26,4 µm.
Três vias de exposição
A exposição a micro e nanoplásticos ocorre por diferentes caminhos — e com uma frequência difícil de evitar. Segundo Mauad, são três principais vias: pela alimentação, pela respiração e, possivelmente, pela absorção da pele. “A gente sabe que a água está contaminada, que todos os alimentos têm contaminação, principalmente os do mar, embutidos em plástico”, explica a patologista. “Quando as pessoas passam aqueles cremes que têm microplástico, os esfoliantes, isso também tem risco de ser absorvido.”
Partículas também flutuam no ar, resultado do desgaste de pneus, de emissões industriais ou da ressuspensão de resíduos no solo, por exemplo. “A gente inala microplástico”, resume Thais Mauad. Uma vez no corpo, esses polímeros podem alcançar qualquer órgão. Outro estudo da Universidade do Novo México, esse publicado no periódico Toxicological Sciences, detectou microplásticos em todas as amostras de testículos humanos analisadas, com média de 328 microgramas por grama de tecido – valores ainda mais altos que os encontrados em placentas e algumas regiões do cérebro. “Em todos os tecidos em que os microplásticos foram procurados, eles foram encontrados”, resume a professora da USP.
Efeito potencialmente tóxico
A lista de plásticos já encontrados em tecidos humanos inclui polietileno, PVC, poliestireno, poliuretano e PET. Além de atuarem como corpos estranhos, capazes de provocar inflamações e alterações celulares, eles carregam aditivos potencialmente tóxicos — como plastificantes, pigmentos e retardadores de chama —, cujos efeitos no organismo ainda são investigados.
“Embora a gente tenha dados que ainda são preliminares, sabemos que os microplásticos podem induzir inflamações crônicas, alterações hormonais, ter efeitos tóxicos sobre os sistemas nervoso e imunológico”, afirma Lis Leão. “Eles também carregam compostos químicos que podem interferir nos nossos processos biológicos.”
Estudos laboratoriais e modelos animais indicam possíveis efeitos adversos para a saúde. Pesquisas publicadas nos periódicos Particle and Fibre Toxicology e Environment International mostraram que os microplásticos podem afetar o metabolismo hepático e aumentar o risco de resistência à insulina. Outro estudo sugeriu impactos no sistema reprodutivo, com evidências iniciais de presença de partículas no fluido folicular humano.
“Esses estudos são muito recentes, então temos pouca informação. Por isso a divulgação e disseminação desse conhecimento ainda é insuficiente para que as pessoas, a sociedade de uma maneira geral, tenham conhecimento disso”, opina Leão, coordenadora da linha de pesquisa eNatureza, do Einstein, que atua na geração de conhecimento sobre a relação entre saúde humana e meio ambiente, além da produção de materiais educativos e cursos gratuitos.
Ela reforça que a ciência precisa avançar na padronização de métodos para análise em tecidos humanos e no desenvolvimento de biomarcadores sensíveis, capazes de medir os impactos da exposição ao longo do tempo.
Risco naturalizado pela vida moderna
A falta de informação ajuda a explicar por que, apesar das evidências científicas acumuladas sobre a presença de microplásticos no organismo humano e seus potenciais riscos à saúde, a resposta da sociedade ainda é tímida. Parte dessa inércia também se deve à forma como o plástico foi naturalizado na vida moderna: ele representa conveniência, acessibilidade e velocidade. “Se o plástico faz parte da nossa vida e está em todo lugar, então a sociedade ainda não consegue percebê-lo como uma real ameaça”, aponta Leão.
Somado a isso, há a invisibilidade da contaminação. Micro (menos de 5 milímetros) e nanoplásticos (menos de 1 micrômetro), por definição, não podem ser vistos a olho nu — o que dificulta que a ameaça seja percebida com a urgência que merece.
Isso se reflete na ausência de uma mobilização política e regulatória mais contundente. Enquanto alguns países avançam em políticas restritivas, o Brasil, por exemplo, ainda não aderiu a compromissos globais como o Tratado Global do Plástico, em negociação na Organização das Nações Unidas (ONU) desde 2022.
Durante a Conferência da ONU sobre os Oceanos, realizada em junho de 2025 na França, representantes de diversos países alertaram que a poluição plástica representa uma ameaça crescente à saúde humana e à vida marinha. “O Brasil não quis assinar o tratado pedindo diminuição de produção. O país errou ao não assinar isso”, opina a patologista da USP.
A especialista do Einstein aponta outro obstáculo estrutural: os interesses econômicos. “A gente sabe que existe uma pressão muito grande e isso acaba por dificultar, como em todas as outras áreas, essa conexão entre ciência, políticas públicas e a percepção social”, diz Lis Leão. “Precisamos de um trabalho maior de conscientização e de disseminação do conhecimento para ter uma resposta mais eficiente da sociedade em relação a como controlar e como se posicionar em relação ao uso do plástico nas nossas vidas.”
Cultura do descartável
Diante da ubiquidade dessas partículas no corpo humano, cientistas começam a investigar possíveis métodos de remoção. Um estudo publicado no periódico Brain Medicine, conduzido por pesquisadores da Universidade Técnica de Dresden, na Alemanha, sugeriu que a aférese terapêutica — técnica de filtração sanguínea utilizada em algumas doenças autoimunes — pode ser uma via promissora.
O procedimento foi aplicado em pacientes com encefalomielite miálgica, e os resíduos descartados pelo equipamento foram analisados por espectroscopia. As análises revelaram compostos com características semelhantes à poliamida e ao poliuretano, dois plásticos amplamente usados.
Outro caminho para mitigar os impactos é a redução do uso de plásticos descartáveis e a substituição por materiais biodegradáveis ou reutilizáveis. “Temos que parar com a cultura do descartável. Grande parte do plástico que está na natureza vem de coisas que você usa por um minuto e joga fora, como abrir uma garrafa d’água”, diz Mauad.
Para além das escolhas individuais, a pesquisadora do Einstein defende uma transformação mais ampla baseada principalmente na educação ambiental. “Precisa ser iniciada desde a infância e seguir por toda a vida. A educação ambiental pode despertar uma consciência mais crítica, conectar melhor as escolhas individuais das pessoas e levar isso de uma forma coletiva a pressionar por mudanças mais estruturais”, avalia Leão.
Nesse cenário, é preciso também incluir a indústria na pauta da responsabilidade estendida do produtor — princípio que transfere aos fabricantes a responsabilidade pelo ciclo de vida de seus produtos, do início ao fim —, já aplicada em setores como o de eletroeletrônicos.
“Precisamos de uma revisão no modelo de produção e de consumo. De uma responsabilização das indústrias, porque hoje o descarte fica por conta de cada consumidor. E quem produziu, envasou e distribuiu parece que não tem nenhuma responsabilidade sobre todo esse universo de plástico que está sendo descartado, na maior parte das vezes, de maneira inadequada”, critica Leão.
O Brasil tem avançado nesse sentido. O maior exemplo é a Política Nacional de Resíduos Sólidos, regulamentada pelo Decreto nº 11.413/2023, que criou dois tipos de certificados emitidos para as empresas: o CCRLR (Certificado de Crédito de Logística Reversa), que comprova a compensação ambiental pela reciclagem, e o CERE (Certificado de Estruturação e Reciclagem de Embalagens), voltado ao financiamento e à estruturação de sistemas de coleta.
Ambos os instrumentos procuram ampliar a rastreabilidade e a transparência na gestão de resíduos, além de incentivar que empresas invistam diretamente em soluções de reciclagem e redução de impacto ambiental — aliviando assim a responsabilidade das pessoas e do poder público em reduzir o descarte de plástico na natureza. “Problemas complexos exigem um pouco mais de intersetorialidade, de maior consciência de todas as cadeias que envolvem a produção e o consumo do plástico”, resume Leão. “Mas muita coisa ainda vai precisar ser adequada e reestruturada na nossa sociedade em relação ao uso do plástico.”