Literalmente, no meio da rua. Assim é o programa desta semana da coluna GENTE (disponível no canal da VEJA no Youtube, no streaming VEJA+, na TV Samsung Plus e também na versão podcast no Spotify). Em meio ao centro histórico de Paraty, durante a realização da Flip, que se encerrou no domingo, 3, a apresentadora de TV portuguesa Anabela Mota Ribeiro, 57 anos, falou sobre a temática de seu primeiro livro de autoficção, O quarto do Bebê (ed. Bazar do Tempo), no qual traz sua vivência com o câncer, em 2019, e como precisou lidar com a infertilidade diante da cobrança dos que a rodeavam para ser mãe. A obra, que se tornou uma das mais vendidas e debatidas em seu país, onde foi lançada há dois anos, já chega ao Brasil causando comoção da crítica, pela forma franca com que Anabela lida com seus mais íntimos sentimentos. Apaixonada por Machado de Assis, tema de seu doutorado, a apresentadora diz ainda como o homenageia em seu livro. Assista.
DOR PARTICULAR. “Quando comecei a escrever O Quarto do Bebê, o mais surpreendente para mim foi começar a encontrar as palavras para dizer a minha dor particular. E isso aconteceu muitos meses depois do câncer e dos tratamentos, durante os quais assumi uma posição de combate, superação, com disciplina e estoicismo que consegui ter naquele momento. E depois, quando confinamos em casa (na pandemia), meu marido sugeriu-me que escrevesse; e foi surpreendente para mim que eu conseguisse escrever e começar a tatear-me. É essa a expressão que me ocorre, porque é mesmo como se, com a ponta dos meus dedos, eu conseguisse tocar o meu corpo próprio de uma forma sensível, de uma forma tangível, aquilo que é incorpóreo e que é a dor, e que é o trauma, e que é a sensação da perda”.
CORPOS QUE NINGUÉM VÊ. “Quando eu disse aos meus amigos: ‘vou publicar um romance’; eles perguntaram-me sobre o que era. E assustei-me um pouco, porque tinha dificuldade e resistia em reconduzir o assunto a uma frase. Em primeiro lugar, porque gosto muito daquilo que é inclassificável, que é híbrido, que rompe com as categorias. Então, minha resposta intuitiva, foi: ‘este romance é sobre ser mulher e ter um corpo de mulher’. Os temas do romance são a fertilidade e infertilidade, e a forma como somos educadas para sermos mulheres que procriam, mulheres de corpo erótico, corpo fértil, que escondem o corpo fisiológico, que não falam do corpo menopáusico. E eu escrevi o romance com todos estes corpos e também com o corpo doente”.
QUASE REALIDADE. “Costurar o livro foi também uma forma de cerzir minhas feridas, ao mesmo tempo que o planeta, como casa comum, também estava a precisar de suturar o que estava a ser esgarçado, com uma ameaça invisível, com uma indeterminação absoluta em relação ao futuro. Por isso, é sim um romance autoficcional, ou seja, com um componente autobiográfico assumido, mas com uma deriva ficcional acentuada”.
APRENDIZADOS. “A primeira coisa que aprendi foi que dizer ‘câncer’ não é inexato, mas é incompleto. E eu refiro-me normalmente àquele período como à doença. Porque é isso que uma pessoa compreende, que ter um câncer é o início de qualquer coisa que nos vai mudar para sempre, que vai mudar nosso corpo para sempre. Demoramos muito tempo a atingir a extensão dessa transformação. Há pessoas que não dizem câncer ou cancro em Portugal, ou mesmo tumor, porque são palavras com uma carga pesada. Eu não tenho essa dificuldade. Mas em boa verdade, estive doente muito tempo, com complicações que resultaram depois da tumorectomia, dos tratamentos que fiz, e isso só não teve a ver com o cancro, com os tratamentos que aconteceram naquele período mais circunscrito. Adoeci em setembro de 2019 até o final de 2020, praticamente sempre doente. Aparecia sempre qualquer coisa. Estava a acabar um antibiótico, estava a libertar-me de qualquer coisa e logo a seguir sucumbia de novo. A outra lição, a outra coisa que aprendemos é que a ideia da mortalidade deixa de ser abstrata. Nós vamos mesmo morrer”.
LIDANDO COM A INFERTILIDADE. “Tive de compreender como é exprimi minha fertilidade. Tinha de compreender como é que ia fazer aquilo a que Bentinho chama, no Dom Casmurro, de um ‘filho próprio da minha pessoa’. Uma expressão incrível, não é? Muitos têm um filho próprio da minha pessoa. E eu me batoquei nesta frase. Por que que queremos ter filhos? Por que essa ideia nos acompanha? É ideia ou necessidade ou projeto implicado socialmente? Schopenhauer fala da voz da espécie, assim como se essa força libidinal que temos nos remetesse para o sentido da sobrevivência e da procriação. Outra questão subsidiária é da genealogia e é do legado. Como é que nos prolongamos? Através de um nome? Através de um filho próprio da nossa pessoa? Outra ainda, tão importante quanto, é a do sentido. O que é que nos dá sentido? E não é incomum vermos pessoas dizer que o que dá sentido à sua vida é ter um filho. Que o dia mais feliz da sua vida foi quando o filho nasceu, não é?”.
AMOR POR MACHADO DE ASSIS. “Estudei Machado de Assis no mestrado. Estudei a melancolia e o ímpeto nas Memórias Póstumas de Brás Cubas. No doutorado prossigo o estudo de Machado. O começo de O quarto do bebê é um mimetismo, citação, é um início de algo logo na primeira frase com uma obra não tão lida do Machado de Assis, Esaú e Jacó. Quando o conselheiro Aires morreu, acharam-lhe na secretária sete cadernos ricamente encapados. É assim que começa o livro. Faço uma homenagem, porque aqui alguém também encontra depois da morte o diário de uma paciente. Para mim, Machado é o maior escritor de língua portuguesa. É uma paixão continuada”.
Captação de imagens: Libário Nogueira. /// Sobre o programa semanal da coluna GENTE. Quando: vai ao ar toda segunda-feira. Onde assistir: No canal da VEJA no Youtube, no streaming VEJA+, na TV Samsung Plus ou no canal VEJA GENTE no Spotify, na versão podcast.