De musa das Diretas Já à voz da COP30, que acontece em sua cidade-natal em novembro, Fafá de Belém completa 50 anos de carreira com uma vasta bagagem na música e no ativismo. Ao longo de sua trajetória, a artista ficou conhecida como a “cantora dos Papas”, por ser a única a cantar três vezes para a patente mais alta da Igreja Católica. Devota de Nossa Senhora de Nazaré, é no Círio, a maior festa religiosa do Pará, e uma das maiores do Brasil, que Fafá encontra o equilíbrio entre a arte e a fé. A VEJA, ela conta o que espera para a COP, recorda momentos marcantes de sua carreira e fala de seus anseios para o futuro.
Como a senhora espera que a cultura e os saberes paraenses agreguem valores à discussão da COP? Eu espero, principalmente, que a gente seja ouvido. Não é o povo amazônico que polui, mas quem vem de fora. Belém já teve papéis fundamentais no Brasil. Foi Belém que gerou a discussão da Semana de Arte Moderna, em São Paulo (em 1922). Todo mundo queria vir ver “que Amazônia é essa”. A cidade tem uma pulsação cultural muito forte, mas fomos sendo apagados.
Quando se deu esse apagamento? A partir de determinado momento, passamos a ser vistos como exóticos, muito por preconceito do Sudeste, e é isso que acredito que precisamos quebrar: mostrar quem somos culturalmente, com os nossos saberes e fazeres, e encontrar formas de cruzar olhares e achar soluções. Acho que essa é a grande oportunidade da COP, de olharem para nós com respeito, com atenção, e ouvirem a nossa voz. Vai ser importante também para que possamos ouvir aqueles que têm interesse real em trabalhar para que essa floresta, essa região e essa cultura tenham uma vida maior.
Como sua carreira não foi abalada, mesmo com posicionamentos considerados polêmicos e, às vezes, contrários a governos então vigentes no país? Fui saindo dos lugares. Por exemplo, não tenho gravadora desde 2001. Quando produzi o meu disco cantando Chico Buarque, nenhuma gravadora quis, afinal, eu era uma cantora mais ligada ao brega. Quando gravei meu primeiro sucesso popular, “Memórias”, tive que gravar escondida do produtor, dentro do banheiro, porque ele dizia que “isso não era coisa de cantora classe A”. Para gravar “Nuvem de Lágrimas” também foi difícil. Chamei Chitãozinho e Xororó porque me emocionava ao ouvir esses meninos cantando. Quando falei que ia gravar com eles, disseram que eu não podia me misturar com “essa gente”.
Por que não? Naquela época, os sertanejos só tocavam na madrugada. Um ano depois, gravei. Quando ouvi na rádio, estava tocando só comigo. Liguei para o diretor artístico, e ele, todo animado, disse que ia ser um sucesso, que ia explodir, mas que tinha que ser sem eles, porque senão não tocaria nas rádios cariocas. Respondi: “Então tire a música do disco”. A música explodiu com eles em Fortaleza, e a Glória Perez colocou na novela. Me sinto um pouco responsável pelo movimento sertanejo. Quando vi Marília Mendonça, pensei: “Essa menina parece comigo”. Mas nunca tive a chance de conhecê-la.
Há algo que você ainda sonha em realizar Tem muita coisa. A minha vida é andar para frente, e eu não tenho medo de dar saltos. Ainda quero trazer meu show de rock and roll para o Rio de Janeiro – ele começa com Black Sabbath, que eu ouvia aos 16 anos, e vai até Cazuza. Sou uma pessoa muito curiosa, e acho que gente curiosa tem muito espaço. Não me preocupo se a crítica vai gostar, com o que vão dizer. Só faço coisas que me emocionam profundamente, não tenho nada engessado.
Essa postura eclética já te trouxe problemas?Eu gosto de música. A música me arrepia. Não tenho medo. Fiz um disco chamado Canto das Águas, só de autores paraenses. Foi o primeiro disco de uma cantora paraense indicado ao Grammy Latino. Mais tarde, fiz o primeiro disco só de guitarradas, em três dias, com Manoel Cordeiro. Fizemos um espetáculo chamado Do Tamanho Certo para o Meu Sorriso. Gravamos tudo em casa e depois levamos para a gravadora. Explodiu de novo. Mas não sou escrava de nada, nada me comanda. Foi assim com o fado também, que ninguém acreditava e explodiu.
Qual a mais recente situação desagradável vivida por causa dos seus posicionamentos? No ano passado, durante a procissão do Círio, um deputado que votou pelo PL da devastação me fez um gesto obsceno ao lado da Berlinda, com as crianças na frente. As crianças disseram: “Estão dando o dedo para a tia Fafá”. Na hora, eu nem vi. Vou para outro planeta, estava cantando há 70 horas, naquela emoção. Mas nossa equipe filma tudo, sempre.
O que sentiu? É uma falta de respeito. Eu mesma não vi, foram as crianças que viram, mas é uma falta de respeito com elas e com Nossa Senhora. Ultrapassa qualquer possibilidade de sanidade mental. E se diz cristão. Estava dentro da corda, onde ficam pessoas escolhidas, ligadas à Igreja, à diretoria do Círio, os cardeais, e esse cara fazendo gesto obsceno para as crianças. Foi vergonhoso. Quando se chega a esse nível de desequilíbrio, é preciso responder com sensatez.
Qual é o maior aprendizado que leva desses 50 anos de carreira? Uma vez, ainda no início da minha carreira, recebi uma proposta para cantar algo que faria muito sucesso. Falei com Roberto Sant’Ana, que teve uma importância enorme na minha trajetória. Contei, achando maravilhoso, e ele me perguntou o que eu queria da vida: um sucesso ou uma carreira? Ainda lembro dele dizendo: “Se você fizer isso, vai vender muito, mas não vai ter o próximo disco”. Ali entendi que teria momentos de muita solidão, seria isolada por não puxar saco de ninguém, mas conquistaria muita gente com a minha verdade. Nunca fui magra, sempre fui florida, colorida, gargalhei alto, dancei descalça, usei os cabelos soltos, nunca gostei de maquiagem, muito pelo contrário, até pintava olheiras mias escuras. Não fazia sentido me encaixar em nada. Acho que esse foi um grande aprendizado.