counter Valter Hugo Mãe: ‘Minha obrigação é tornar a vida suportável’ – Forsething

Valter Hugo Mãe: ‘Minha obrigação é tornar a vida suportável’

Valter Hugo Mãe fala como escreve: envolvente, ele solta frases que poderiam ser de um poema, enquanto conta uma história pessoal para, em seguida, lançar uma tirada irônica. O autor português de 53 anos recebeu a reportagem de VEJA na pousada em que está hospedado em Paraty, onde acontece a 23ª edição da Flip, feira literária que se tornou reduto anual do que há de mais interessante na literatura nacional — e estrangeira, especialmente o que já caiu no gosto do brasileiro. É o caso de Hugo Mãe — ou melhor, seria, não fosse ele um brasileiro honorário. Na entrevista, o autor falou sobre essa forte relação com o país e a adaptação de seu livro O Filho de Mil Homens pela Netflix, dirigido por Daniel Rezende e com Rodrigo Santoro no protagonismo. Confira:

Você veio para a Flip em 2011, justamente para lançar o livro O Filho de Mil Homens, que agora foi adaptado em um filme. Sua relação com o Brasil só cresce. Como enxerga essa proximidade com o país? Sabe, somos tão intrincados que não tenho uma relação de estrangeiro com o Brasil. Eu venho e fico naturalizado. Encho minhas malas de livros, gosto de saber o que há de novo. Amo pão de queijo, pudim de leite — que é meu doce favorito no mundo. É um lugar que me comove e tão familiar, que eu reconheço o cheiro do Brasil chegando aqui. É um lugar que me diz muito respeito e é muito gratificante que o meu trabalho possa ter aqui um efeito e possa ser tão bem recebido.

Já viu alguma coisa do filme? Eu vi o filme ontem e eu amei. Acho sinceramente que o filme é melhor que o livro. E isso deve ser muito mal para mim, porque, até hoje, eu conhecia apenas um filme que era francamente melhor que o livro, que é a adaptação que o David Lynch fez de o Coração Selvagem. Acho que agora me lasquei porque o filme do Daniel Rezende vai ser a segunda adaptação do mundo que é muito melhor que o livro. Fiquei deslumbrado com o filme. Acho que o Daniel fez uma obra autoral que não presta vassalagem nenhuma, não fica submissa o livro. Muito pelo contrário, ela liberta-se e, ao libertar-se, ela carrega o livro dentro de si. É o melhor filme do ano.

Quão envolvido esteve nos bastidores? Em nada. Não fiz nada, inclusive.

Teve medo de entregar o livro assim para uma adaptação? Eu sou muito corajoso. Eu não sou desapegado. Eu gosto das minhas coisas, mas eu sou muito corajoso. Eu achei que aquelas pessoas queriam muito produzir o filme e que elas tinham de o fazer sem que eu ficasse perturbando. Eu tive essa lucidez a dada altura de perceber que a melhor posição para mim seria a de não perturbar em nada.  Porque eu ia ter a tentação de me intrometer, de sugerir pessoas para o elenco, para a trilha sonora. Seria profundamente maravilhoso se eu pudesse mandar em tudo. Mas eu não sei fazer filmes. Não é o meu mundo. Minha relação com o cinema é de observador.

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O Filho de Mil Homens ecoa tramas clássicas de homens incompletos em busca de um filho. Como é hoje sua percepção sobre essa ausência? Esse livro é muito pessoal e diz respeito a minha própria vida. Então fiquei surpreso quando dois anos depois do livro publicado alguém fez a relação da história com a de Pinóquio e Gepeto. Eu não tinha dado conta disso. Como assim? Alguém escreveu sobre isso antes de mim? Como se atreveram a inventar o Gepeto e o Pinóquio? (risos). O livro veio de um lugar muito íntimo. Meus romances levam cerca de 10, 12 anos, de preparação. O Filho de Mil Homens não, ele surgiu numa crônica. Eu estava pensando que estava com 40 anos de idade, sem filhos. Que havia falhado nos meus sonhos. Que sonhei com tudo errado, sonhei mal. Então comecei a escrever: “Um homem chegou aos 40 anos e assumiu a tristeza de não ter um filho”. Fiz todo o primeiro capítulo em 3 horas. O livro foi escrito com muita rapidez. Foi um livro generoso comigo, porque não me tomou muito tempo e me levou a lugares íntimos.

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Rodrigo Santoro e Miguel Martines: atores vivem pescador que sonha em ter filhos e garoto órfão unidos pela vidaMarcos Serra Lima/Netflix

Hoje vê seus livros como “filhos”? Não. O filho é uma coisa melhor. Não é feito em páginas de papel e se mexe sozinho. As crianças são melhores, as pessoas são sempre melhores que as bibliotecas. A biblioteca é uma multidão, mas é a multidão acessória. Não é a multidão essencial. Essencial é gente.

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E como ficaram os planos de ter filhos humanos? Não os tenho, quis muito, quero muito, mas não aconteceu. Eu não tenho filhos, tenho sobrinhos e adoro os meus sobrinhos, mas sei que os filhos são outra coisa, eu vejo perfeitamente, quer dizer, por mais forte que seja a minha relação com os meus sobrinhos, não posso estar no lugar dos pais deles. Por isso, eu fico nesse lugar empobrecido da família, empobrecido da existência. Sou o mais pobre da minha família. Sou o único sem filhos.

Você pode ser o tio legal. Sim, sou o tio legal e também abobalhado. Pago algumas coisas, esbanjo com os sobrinhos. Tio é aquela coisa assim que é meio animal doméstico, né? A gente gosta como gosta do cachorro. Aliás, eu não devia dizer isso, mas eu acho que gosto mais do meu cachorro do que de grande parte dos meus tios (risos). Eu gosto dos meus tios. Eu quero muito que eles estejam felizes e saudáveis. Mas o meu cachorro é tão lindo e ele gosta tanto de mim. Eu acho que ele também gosta mais de mim que os meus tios. Sabe?

Uma particularidade da sua escrita é a capacidade de transformar situações difíceis em otimistas. Como encontra esse equilíbrio? Eu acho que é muito da minha natureza. Eu venho de uma família bastante humilde, que teve bastantes dificuldades, é um lugar um pouco sofrido. Quando eu nasci, a minha mãe tinha já perdido um filho. Então, havia esse ritual de visitar o meu irmão no cemitério e de eu ser meio obrigado a amar um irmão que já estava morto e que não tinha conhecido sequer. Então, havia uma espécie de fantasma na casa que nós precisávamos não só amar, mas também de fazer essa criança que não era ninguém ser alguém. Nós tínhamos de fazer com que ele fosse alguém.
Então, eu acho que a minha realidade foi sempre essa de fazer um esforço para aceitar que alguma coisa terrível tinha de ser uma coisa boa. Tinha de ser transformada em algo de respeitoso e tinha que ser celebrado. Quando recebo uma notícia ruim, quando há uma dificuldade, eu sempre respiro fundo e penso assim, pronto, é horrível que isto esteja a acontecer, mas deixa ver como é que a gente vai passar por isso. Então, eu sinto que minha obrigação é tornar a vida suportável e que possamos ter sempre a lúcida noção de que muita coisa é maravilhosa.

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