Deve-se a Sigmund Freud uma compreensão do luto que até hoje vigora nas sociedades ocidentais. Foi o pai da psicanálise que, em 1917, entendeu que a perda de um ente querido, experiência dolorosa da qual ninguém consegue escapar, não deveria ser encarada como algo corriqueiro, mas como um processo digno e saudável. Nenhuma palavra sobre a morte de um animal de estimação, campo de estudos que só se descortinou mais recentemente e não para de evoluir, mesmo que muita gente ainda subestime a tristeza que brota após a saída de cena de um pet. Atualmente, já há inclusive profissionais especializados em oferecer conforto a quem não pode mais contar com a boa companhia do melhor amigo, ajuda para lá de desejável.
O reconhecimento da existência do luto, segundo um novo estudo publicado no Jornal Europeu de Trauma e Dissociação, é passo importante para suavizar o sofrimento de quem acaba de se despedir de seu escudeiro de quatro patas. “Antes, até os terapeutas achavam esse sofrimento desproporcional”, diz o psiquiatra Higor Caldato, sócio do Instituto Nutrindo Ideias, que recebe pacientes enlutados. “Sabemos agora que o vínculo estabelecido com o animal é tão profundo como o que temos com as pessoas.” Psicóloga da nova safra de profissionais dedicados ao vazio deixado pela partida de um pet, Juliana Sato decidiu mudar de linha depois que teve de internar a própria cachorra por dias, devido a um problema de saúde. Ela não morreu, mas a experiência a fez repensar sua abordagem. “Passei a ajudar tutores a atravessar essa fase tão cheia de culpa e vazio”, explica.
Vencer esse duro período pode levar tempo. A aposentada paulistana Regina Mattos, 60 anos, guarda até hoje as cinzas da vira-lata Rose, morta há três anos por causa de um câncer. Depois de se submeter a sessões de quimioterapia, a cadela precisou ser sacrificada. “Pelas circunstâncias, a morte da minha mãe foi mais fácil de superar”, relata Regina, que chegou a procurar um centro espírita especializado em pets para saber se a bichinha “estava bem em outro plano”. Evidentemente que o terreno das crenças é demasiado individual, mas, segundo uma pesquisa da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, experiências relacionadas à espiritualidade costumam trazer conforto a tutores enlutados e podem ser até mais eficazes do que os protocolares conselhos do tipo “era só um animal” ou “arruma outro que fica tudo bem”.
Incorporados há milênios ao círculo humano, os pets conquistam cada vez mais espaço. Antes restritos aos quintais, ganharam creches, toda sorte de mimos em serviços ultraespecializados, registros, seguro saúde e plano funeral. Frequentemente, sua guarda entra em disputa em processos judiciais de divórcio. Os arranjos em que eles se inserem receberam até o termo “família multiespécie”, cunhado em 2000 na França e propagado mais tarde no Brasil, desencadeando discussões de fundo antropológico e jurídico. É o veloz avanço deles que enseja tanto debate. Os últimos números apontam um contingente de 155 milhões de animais de estimação em lares brasileiros, entre as maiores populações do planeta, superando as crianças no país (veja o quadro). Ao longo dos tempos, eles vêm provendo com fidelidade “canina” suporte emocional aos humanos. Quando se vão, deixam uma dor que, tal como Freud acreditava, não deve ser jamais posta no escaninho dos tabus.
Publicado em VEJA de 25 de julho de 2025, edição nº 2954