Uma viúva organiza dentro de sua própria casa um velório para seu marido. Chama vários convidados para homenagear o homem que, mesmo morto, volta ao lar para narrar do próprio enterro, vendo, ouvindo e comentando tudo que se fala sobre ele. Aproveitando a presença no ambiente, ele decide que precisa ter uma última conversa com a esposa, antes que chegue a meia-noite. O texto em questão é um velho conhecido da dramaturgia brasileira: Fica Comigo Esta Noite, escrito por Flávio de Souza. Sua primeira versão, de 1988, foi estrelada por Carlos Moreno e pela então novata Marisa Orth, que até aquele momento só havia feito uma peça além das peças do currículo da Escola de Arte Dramática da USP (EAD). Exatos 37 anos depois e com três diferentes versões da história – que foi vivida também por Débora Bloch, Luiz Fernando Guimarães e Murilo Benício – a peça retorna aos teatros brasileiros, com um parceiro de longa data de Marisa: Miguel Falabella.
A sugestão para recontar a história veio de Marisa, 61, ao ser convidada por Falabella, 68, para fazer uma peça em Portugal. Orth, que teria sua primeira apresentação no país lusitano, decidiu levar um de seus primeiros trabalhos profissionais. “A peça serve para muitas realidades, por isso nossa ideia de trazê-la de novo”, afirmou Marisa em entrevista a VEJA. Agora, a icônica dupla da comédia traz aos palcos brasileiros a adaptação, que une o conhecimento do texto da atriz à comédia física de Falabella.
Em São Paulo, a estreia acontece nesta quinta-feira, 24, e termina em 14 de setembro, com sessões no Teatro Bradesco. No Rio de Janeiro, a temporada se inicia em 10 de outubro e vai até 30 de novembro no Teatro Casa Grande. A VEJA, Marisa e Falabella contam sobre retomar a parceria nos palcos com uma história que levará alívio, reflexão e risadas ao público.
Confira a entrevista na íntegra:
Marisa, como recebeu a proposta de fazer essa peça pela primeira vez e o que lhe chamou a atenção ao ler o roteiro? Foi a primeira peça que eu fiz. Eu cheguei a fazer as peças do currículo da EAD (Escola de Artes Dramáticas da USP), mas só tinha feito uma peça por fora. Aí eu li e gostei, ouvi minha voz falando. E, no primeiro ensaio, que seria para nós conversarmos, eu já cheguei e falei: “Naquela hora eu acho que tem que ser assim”. Era eu, Flávio [de Souza] e Carlinhos Moreno. Eles disseram: “Pelo jeito que você tá falando, você já entrou, né?”, e falei: “É, acho que sim”. Eu tinha ido para dar uma de difícil. Mas já fui me metendo na peça. E foi muito importante para mim, porque fui muito despretensiosa e a peça tem um registro de bastante comédia, e eu não entendia ainda que eu era boa de comédia naquela época, misturada com drama ainda por cima. Pegou em muitas qualidades que eu tenho como atriz, então chamou muita atenção, foi um sucesso bem bacana, inesperado.
Miguel: Foi um sucesso nos anos 80, quando ainda não havia essa loucura midiática. Eu me lembro de, no Rio, ouvir falar dessa peça que era em São Paulo, e falando especialmente da Marisa.
Marisa: E daí foi um êxito mesmo. O Silvio de Abreu já viu e já me deu meu primeiro papel em novela. É aquele trabalho que abre portas, que muda sua categoria. É uma peça que me é muito cara. Muitos anos depois eu fui convidada para fazer a peça novamente pelo Murilo Benício, que estava produzindo essa peça, porque depois de um tempo ela ganhou vida própria, virou um texto muito famoso na dramaturgia brasileira. Teve algumas montagens importantes. O Murilo tinha visto a peça com a Débora Bloch e Luiz Fernando Guimarães, no começo dos anos 90. Aí ele se encantou e quis fazer de novo. Fizemos no Brasil inteiro. Viajamos como loucos. Fizemos São Paulo, Rio, muitas viagens. Com essa peça conheci lugares que eu nunca mais voltei. Bauru, Taubaté, uma loucura. As grandes capitais, as cidades pequenas. E agora, de novo, apareceu essa oportunidade maravilhosa de levar para Portugal um espetáculo comigo e com Miguel. Miguel já é freguês de Portugal, sempre leva espetáculos para lá. Eu nunca tinha conseguido levar, apesar de saber que era conhecida lá. E na correria, precisávamos decidir o que levar. Eles queriam comédia, aí eu propus Fica Comigo Esta Noite. Aí o Miguel pensou, falou: “Pô, pode até ser”, mas não era a primeira escolha.
Miguel: Mas Flávio, o autor, topou. Topou que a gente desse uma revisitada também na dramaturgia. Muitas coisas eu improvisei dentro do contexto da peça. Nós trouxemos a peça para o nosso universo, para a nossa embocadura, que é o importante.
Marisa: O Miguel está sendo humilde, mas ele desenvolveu muito mais o papel do morto. O morto não estava tão bem desenhado como está hoje. O Miguel é um autor. E o Flávio, com uma maturidade maravilhosa, faz a gente ficar bem menos vaidoso. Ele falou: “Por favor, Miguel, escreve direito esse cara”. E é o que está acontecendo. Ficamos três meses em Portugal, então, o Miguel foi desenvolvendo e você não sabe onde foi parar essa peça.
Miguel: Basicamente, tem a estrutura da peça, mas tem esses brilhos que a gente foi acrescentando, que na verdade têm a ver com as nossas personalidades de atores. Eu tenho uma coisa muito especial com a Marisa. Nós temos uma química muito especial, que não se consegue sempre. Não é à toa que existem duplas que ficaram famosas ao longo da história. É porque tinham uma química, não só no cinema, como no teatro, há um entendimento da respiração do outro. A Marisa me acha engraçado, e eu acho ela engraçada. Então a gente não está fazendo graça só para o público, a gente está fazendo graça um para o outro também. A gente entende a pegada de humor, o olhar. E o público reconhece isso. É muito prazeroso, porque a plateia passa a ser mais uma personagem. Eles estão ali, mas eles são participantes desse velório.
Marisa: Até porque, por ele fazer o papel de morto, ele tem livre passeio por todo lugar, entendeu? Ele conversa com o público, ele desconversa, levanta, deita. Ficou uma coisa livre, o que é muito bom para a personalidade de ator do Miguel. Eu diria que cada sessão ele improvisou uma coisa nova. Não tem uma sessão igual a outra.
Miguel: A gente respeita a dramaturgia, mas ocasionalmente nos ocorre alguma coisa. Eu, por exemplo, sou um ator muito físico. Então, as coisas para mim vêm sempre de uma coisa física. Por exemplo, a gente tem um Jesus na peça. O meu Jesus desliza, ele anda de roller. É um Jesus de patins.
O que há de novo na peça?
Miguel: Eu peguei uma coisa que é da peça, que são as personagens que estão no velório, e eu escolhi “tipos” que eu dominasse melhor para fazer essas personagens. Foi realmente uma criação que foi sendo aprimorada durante os ensaios e na temporada portuguesa.
Marisa: É um velório, tem a viúva, tem o morto, mas o velório está cheio de gente. Até três quartos da peça, está cheio de gente, eles só ficam sozinhos no final, embora estejamos de fato sozinhos. Mas essa é a habilidade do ator. Ele está povoado ali. Não só eu povoo o velório, como ele também. Ele fica andando pelo meio das “pessoas”, e fica dizendo que elas estão falando. Contando, dizendo, aquele papo de velório.
A peça ganhou algum novo contorno por causa da parceria de vocês?
Miguel: Acho que a peça toda ganha um contorno novo. Nós estamos numa idade mais avançada. Se você vê um casal de 30 anos falando de morte, aquilo é muito distante da realidade dos atores. Nós já estamos “cacuras”, tem um outro peso. E o nosso público, que a grande maioria é um público que está mais velho também. Eles têm um outro entendimento desse assunto. Esse assunto que tinha uma leveza quando foi feita por uma menina de 20 e poucos anos, tem um outro peso agora. Nós nos tornamos muito mais críveis como um casal que passou uma vida juntos e agora teve uma despedida.
Marisa: Eu já estou numa geração que existem viúvas. Numericamente tem mais viúvas do que tinha quando eu tinha 20 e poucos anos.
Dos anos 1980, quando a peça foi escrita, para hoje, mudou-se muito o jeito de falar sobre luto, sobre as formas de lidar com ele. Como a nova versão da peça entra nesse tema?
Marisa: As pessoas continuam se amando, e a morte continua terrível.
Miguel: Mas as pessoas se amam diferente, totalmente.
Marisa: Eu acho que a peça fala de coisas que não mudam. Imagina se todo mundo que você perder, e dói muito quando você perde alguém, você pudesse conversar aquelas últimas coisinhas que faltaram? É sobre isso, sobre essa vontade. Porque o pior da morte não é perder as pessoas, a gente sabe que todo mundo vai morrer. É o desejo de que ficasse tudo certinho antes da morte. Tem umas pessoas que morrem e você pensa que não falou tal coisa ou fez tal coisa porque não deu tempo. Isso não mudou. Acho que os casamentos mudaram, isso sim. Mas a sensação do luto, a perda de alguém que se ama, acho que isso é meio eterno.
O público pode se identificar com a história do reencontro do casal, então?
Miguel: Totalmente. Porque eles são um casal que se amou muito em algum momento da vida. Uma escolha foi feita. Eles talvez não fossem um casal que discutia a relação. Mas os dois discutem nessa última noite para que ele possa ir em paz. E eu acho que o povo tem total identificação. Os que ainda estão casados, os que já são viúvos, os que ficarão viúvos, enfim.
Marisa: E tem os que estão solteiros e ficam bem felizes de estarem separados também [Risos]. “Cruzes, ainda bem que eu não vou morrer”. Também tem isso. Acho que os casamentos podem ter mudado. Às vezes a minha personagem é especialmente submissa. Mas os casamentos não são mais tão obrigatórios, especialmente para a mulher. Cada vez mais a gente trabalha fora. Mas uma vez que o casamento se estabelece, não acho que mudou tanto. Acho que serve para muitas realidades. Por isso nossa ideia de trazer essa peça de novo e a aceitação foi maravilhosa em Portugal. Foi sucesso demais. Já estava tudo cheio, porque Caco e Magda são famosíssimos lá, mas o que a gente vendeu de sessão extra. Se não tivesse um boca a boca positivo, gente falando bem da peça, não tinha feito tanta sessão extra. A gente fez sessão extra até morrer. De terça a domingo. Foi uma loucura. Abria sessão extra, vendia. Então acho que está bem atual. Foi muito gostoso descobrir isso.
Miguel: Foi muito prazeroso recuperar o texto. A direção do Bruno [Guida] é muito bacana também. Eu não trabalhei com tantos diretores assim no teatro, porque geralmente eu dirigia minhas próprias coisas. Mas o Bruno é um diretor muito talentoso, muito cuidadoso com os atores e ele criou um ambiente muito propício para que a gente encontrasse uma novidade em nós mesmos, porque a gente trabalha junto desde que os hititas inventaram o aço.
Marisa, a senhora falou recentemente sobre gostar de falar de amor. Acredito que essa também seja uma peça sobre amor, certo? Sim. Eu gosto desse assunto porque eu acho que este é um tema que nos iguala. Eu adoro falar de romance, porque no iate, na favela, com 80 anos ou com doze, a pessoa fica muito parecida quando namora, quando está apaixonada. A mão sua, as frases são iguais, os olhinhos. Eu gosto de coisas que suavizam as diferenças entre as pessoas. Então, temas como romance, morte, são coisas que são iguais para todos nós. O sonho do libriano, de repente, é imaginar um momento que quase não tenha diferença, que está todo mundo meio equânime e equalizado. E eu acho que nesse ponto, o ego não interessa, é um assunto bonito. Eu gosto de ver as pessoas nesse estado, porque geralmente elas mostram o melhor delas. E o pior também.
A peça traz algum tipo de alívio ao público?
Miguel: Ela resolve muito bem no final. Essa noite que eles têm é uma noite de resolução, de aceitação da morte. Ele inclusive quer que ela se case outra vez, quer que ela continue a vida. E ela acha o tempo inteiro um discurso de que não deve se casar de novo, é um luto antigo. Ela tem uma dificuldade de um luto antigo, uma dificuldade de tocar a vida. E, no final, com esse último encontro dos dois, ela vai tendo essa aceitação. Então tem uma redenção no final. Não dele, porque ele vai, mas dela. Porque ela sai dali para encontrar uma nova vida.
Como falar de amor com humor sem que fique raso ou estereotipado?
Miguel: O próprio Flávio, já no texto original, colocou esse debruçar-se sobre si mesmo, dele, dela e da situação. Tem uma coisa linda que ele diz: “Por que será que é tão difícil para as pessoas entenderem a dor dos outros? Tem muita gente aqui que já passou por isso que eu sei. Será que nunca sentiram a dor ou talvez se esqueceram?”. Eles questionam isso o tempo inteiro. Essa questão da morte estar ali ao lado sempre te suscita questões e pensamentos. E a peça mostra isso. Porque eles vão resgatar no passado alguma coisa que eles tiveram lá atrás e que foi importante para ambos. Essa peça é também um encontro nosso na maturidade, depois de toda uma vida trabalhando juntos. Então existe um apuro de tempo. Expertise mesmo. Existe uma expertise no domínio da palavra, da cena, da comédia. E o público sabe disso. Quando a gente entra em cena, não é o Miguel Falabella e a Marisa Orth que entram, é uma história.
Marisa: É um casal. A gente é um casal.
Miguel: Entra uma história. É interessante isso. É gostoso esse respeito que o público tem, não é um respeito que os impeça de entrar na galhofa e na brincadeira, mas é uma relação muito bonita que o público tem conosco. É um escape, uma relação que se estabelece para o resto da vida. Tanto é que nós temos os fãs que não eram para ser nossos fãs, porque são jovens demais, não nos viram na nossa época. Mas conhecem porque a coisa tá na internet, tem recortes, tem memes. Nós nos mantivemos vivos graças a internet. Mas também se não tivesse interesse, ele não teria entrado no recorte.