Preso há 29 anos, Marcio Nepomuceno, o Marcinho VP, se tornou escritor de sucesso no Complexo Alemão, onde lançou à distância seu quinto romance A Cor da Lei (ed. Kotter), obra em que aborda temas como justiça racial e a cultura das periferias no Rio de Janeiro. Condenado a 36 anos de prisão por esquartejar dois traficantes da facção rival ao Comando Vermelho (CV), hoje Marcio não só é autor como também ocupa a cadeira 1 da Academia Brasileira de Letras do Cárcere (ABLC). Fundada por Siro Darlan em 2024, desembargador aposentado, a ABLC é composta por 40 cadeiras com presos ou egressos do sistema penitenciário. Em entrevista à coluna GENTE, Darlan falou sobre a importância da criação da Academia para fomentar a literatura dentro das cadeias, uma maneira de tirar as pessoas do crime. Segundo ele, apesar dos imortais serem autores de diversos livros, o preconceito ainda ronda a sociedade e impede o reconhecimento de suas obras – um caso de exemplo para Darlan é o de Marcio, que em sua visão ainda é tratado de maneira hostil dentro da mídia. Embora seja apenas do jurídico, Darlan acredita que Machado de Assis (1839 – 1908), fundador da Academia Brasileira de Letras (ABL), estaria mais que orgulhoso com sua iniciativa.
De onde surgiu a ideia de criar a ABL do Cárcere? Fiz muitas palestras em escolas prisionais para os alunos presos, uma vez eles me entregaram um apanhado de poesias que publiquei para eles com o título Corpos Presos, Mentes Livres. Quando me aposentei da magistratura decidi peneirar no sistema penitenciário quem eram os escritores. Me reuni com 40 advogados e advogadas e criamos a Academia Brasileira de Letras do Cárcere nos mesmos moldes da Academia Brasileira. Cada cadeira tem um patrono de um escritor que esteve preso, como Graciliano Ramos, Nelson Mandela, Martin Luther King…
Qual o principal objetivo da Academia? Estamos igualmente descobrindo muitos valores do cárcere, pessoas que passaram a vida do cárcere lendo e alguns escrevendo. É surpreendente a qualidade da escrita e não há nenhuma apologia ao crime, todos os escritores do cárcere falam dos malefícios do crime, do tempo que eles perderam em razão de terem cometido os crimes de suas vidas. Nosso trabalho agora é promover cada vez mais a leitura dentro do cárcere, porque o livro é o instrumento principal de ressocialização. Mesmo as pessoas estando presas, quando elas leem, elas viajam, elas vão além das grades e isso é um depoimento comum em todos eles, que descobriram através da leitura que o crime não compensa, o que compensa é a literatura, a cultura.
Como funciona a posse dos imortais? Nós temos acadêmicos presos apenas três, os outros já cumpriram pena, então eles vão pessoalmente na posse. A posse é uma posse solene, de um acadêmico que veste uma toga, que faz o seu discurso, que mostra a sua obra, comenta sobre sua obra. Nós não escolhemos os imortais, na verdade estamos sendo procurados pelos detentos e ex-detentos. Eles quando sabem da existência da academia, eles mandam seus livros, nós temos uma comissão de seleção que vai examinar o livro, a qualidade do livro, a veracidade da escrita, essa comissão recomenda à direção da academia que eles ingressem na academia. E nós escolhemos uma das cadeiras vagas, por exemplo, que vão ser ocupadas na segunda-feira. Uma delas é do Darcy Ribeiro, que é um homem ligado na educação e que tem esse compromisso do resgate da dignidade das pessoas.
Essa literatura se compara aos clássicos brasileiros? Qualquer um dos acadêmicos da Academia Brasileira de Letras do Cáceres está habilitado para integrar e disputar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Nós tivemos agora o lançamento do quinto livro do Márcio Nepomuceno, o quinto. Ele está preso há 29 anos, numa solidão, que ele não se comunica com ninguém, e mesmo assim ele lê e escreve. O último livro dele, que foi lançado agora no Complexo do Alemão, é um romance de 500 páginas. Você imagina que uma pessoa numa solidão, numa solitária, sem contato com o mundo, tem a capacidade e a sensibilidade de escrever um romance.
Há exemplo de outros imortais? Tem um um acadêmico nosso, que ocupa a cadeira Nelson Mandela, que é o Sagat B, que esteve preso durante 12 anos, e ele escreveu o livro O Bandido, que virou artista, e ele é um artista. Ele canta, ele compõe, ele faz músicas e que agora se dedica à literatura. Se você lê o livro Amor Substantivo Feminino, do Sagat, você vai tirar as suas próprias conclusões. É um livro de altíssima qualidade. Se você lê o Valor de uma Lágrima, da cadeira número 4, o Emerson Franco, que é lá de Brasília, você vai ver que dá uma novela o conto dele. Indianarae Alves Siqueira, da cadeira de Oscar Wilde, escreveu um livro de produção literária LGBTQIA+, explorando temas de resistência e identidade dos direitos humanos. É um livro científico que fala das diferenças, dos diferentes e da falta de respeito da sociedade com aqueles que são diferentes. O André Borges, cadeira número 6, de Cervantes, já escreveu 21 livros, como A Viagem e A Fuga, onde ele explora a sua experiência no sistema penitenciário…
Quais imortais estão presos? Os presos são Marcio Nepomuceno, London Johnson e Auduino. Os três são perseguidos políticos e não recebem os benefícios legais em razão de sua origens e a cor da pele e a literatura de cada é de excelente qualidade e exemplar para quem quer sair do crime, muito estimulante.
Você já conversou com eles sobre o processo de escrita deles? Nós conversamos, nós analisamos, nós nos reunimos, nós nos encontramos, nós nos respondemos. A Academia Brasileira de Letras do Cárcere pertence a eles, não é uma propriedade dos advogados que fundaram, nós fundamos para eles, para valorizar essas pessoas que são tão desprezadas pela sociedade, que muitas vezes têm dificuldade de emprego, que querem sair da vida do crime e são impedidos pelo preconceito. De repente eles são acolhidos como escritores, é bem diferente do que a sociedade e a mídia, que trata como se eles fossem criminosos, como se eles tivessem recebido uma tatuagem e dessa tatuagem não pudessem se livrar.
Eles serão reconhecidos pela sociedade como escritores? Eles terão que ser reconhecidos, porque é inexorável a qualidade da obra literária deles. Tanto que nós já participamos da Bienal do Livro aqui no Rio de Janeiro o mês passado, e muitas pessoas compraram os livros deles e visitaram, e vamos participar da Bienal do Livro de Paraty, já estamos nos preparando, nós estamos inseridos no contexto da literatura brasileira.
Já receberam muitas críticas? Esperava muita crítica desse povo maledicente que diz que a gente é amigo de bandido, que a gente está promovendo bandido, mas sociedade está mudando e ninguém falou nada, nem a mídia tradicional e reacionária, mas não estamos tendo a cobertura que nós achamos que merecia a academia.
E os presos e egressos do sistema penitenciário já foram criticados? Quando eles chegam e são reconhecidos como escritores, eles não são bandidos, é o bandido que virou escritor, é o bandido que virou artista, é o bandido que se recuperou, é o bandido que se conscientizou que o crime não compensa. Esse camarada, ele não é um criminoso, ele é um cidadão de muita utilidade para a sociedade, porque eles agora são educadores, eles produzem cultura e literatura.
O senhor se sente o Machado de Assis da ABL do Cárcere? Eu não tenho a menor pretensão de ser um Machado de Assis, até porque eu não sou acadêmico, mas certamente que Machado de Assis estaria muito orgulhoso desses novos acadêmicos que fazem companhia a ele na literatura. Machado de Assis é o primeiro que quebrou paradigmas, um homem negro que fundou uma academia e que levou a literatura do Brasil para o mundo e que é respeitado até hoje. Nossos acadêmicos se sentem prestigiados por sentarem em uma academia tal qual fundada por Machado de Assis.
Como o senhor falou, o Marcinho VP está lançando o quinto livro. Tem contato com ele? O Márcio Nepomuceno foi preso aos 20 anos, com 20 anos ninguém sabe o que está fazendo no mundo, com 20 anos de idade as pessoas cometem equívocos. O Márcio está com 49 anos, ele não é Marcinho VP, ele é Márcio Nepomuceno, ele é um escritor de 5 livros publicados. É um homem de alta respeitabilidade naquilo que ele faz, naquilo que ele escreve, naquilo que ele produz, é pai de 4 filhos, avô de 3 netos. Os 4 filhos dele são resultado da criação dele, ele é muito mais presente, mesmo estando preso, do que muito pai que está solto. Hoje ele é o Márcio Nepomuceno, escritor da Academia Brasileira de Letras do Cárcere e ele merece ser tratado como ele é hoje, não como ele foi ontem. Porque nós não podemos ser responsabilizados pelos erros que cometemos no passado.
Teve contato com os filhos dele? Um dos filhos dele é o maior sucesso de música da periferia, que é o Oruam, com 20 milhões de seguidores e músicas que fazem sucesso no Brasil e no mundo todo. O Oruam descreve, através das suas músicas, a violência e a maledicência da sua sociedade, do local onde ele vive e muitas letras de suas músicas são escritas pelo Márcio, que manda as letras de onde ele se encontra. A outra filha do Márcio, Débora Gama, é uma das melhores cantoras gospel do Brasil, uma voz maravilhosa, reconhecidamente, na área evangélica, é uma das melhores cantoras. O outro filho é o Lucas, que é um advogado. Um homem que educa os filhos como os filhos do Márcio são educados, não é o homem que foi preso aos 20 anos. Assim como o poeta cantava, “Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante”, Márcio se metamorfoseou.
Então o senhor é contra a condenação do Marcio? Não sou contra a condenação do Márcio, quem resolve isso é a justiça, é o juiz que condenou. Eu sou contra a pena privativa de liberdade para o Márcio e para todo mundo. Sou contra a pena privativa de liberdade, porque primeiro que ela é uma excrescência, segundo que ela é um desrespeito à dignidade da pessoa humana e quem diz isso não sou eu. O sistema penitenciário brasileiro está em estado de coisa inconstitucional, quem diz isso é a Suprema Corte do Brasil. A Suprema Corte do Brasil diz que o sistema penitenciário não cumpre a Constituição, não cumpre as leis, está em permanente estado de coisa inconstitucional. Mas os juízes continuam mandando as pessoas para a cadeia. Ora, como vai mandar as pessoas para um estado de coisa inconstitucional? Se você visitar qualquer presídio brasileiro, você vai ver que os animais dos jardins zoológicos são melhores tratados do que as pessoas que cumprem pena de privação de liberdade. Isso precisa mudar, porque até hoje a mídia trata o Márcio chamando-o de Marcinho VP, que ele não é mais. O Marcinho VP sucumbiu na prisão, ele hoje é o Márcio Nepomuceno, escritor e chefe de família.
Acredita que existe um tipo de preconceito ou injustiça que eles sofrem? Evidente. Veja bem, o Márcio Nepomuceno é preso a 29 anos, a pena máxima no Brasil é de 30 anos. Ele está cumprindo a pena toda. O Márcio nunca teve seu regime progredido, embora tenha comportamento exemplar na cadeia. Você sabe que, depois de determinado tempo de prisão, o preso tem direito a remissão, a progressão do regime fechado para o regime semiaberto, do regime semiaberto para o regime aberto, até ir para casa. Esse é o processo de ressocialização. O Márcio é tão perseguido pelo judiciário e pelas polícias até hoje que ele nunca teve um benefício legal concedido. Ele vai cumprir a pena toda, o ano que vem acaba a pena dele e ele vai ser libertado, porque assim manda a lei. Salvo se não arrumarem algumas outras peripécias judiciárias que o mantenham preso. Mas veja como ele é perseguido pelo judiciário, pelo Ministério Público e pela polícia, por aquilo que ele cometeu há 29 anos.
O que você mais almeja para a ABL do Cárcere? Primeiro, que seja reconhecido que atrás das grades não tem animais, tem gente. Gente com sensibilidade, com capacidade, com capacidade intelectual de escrever livros, de dar bons exemplos, de viver em sociedade como nós vivemos. Nós estamos vivendo em uma sociedade de conflito, uma sociedade onde nos odiamos mutuamente. Os acadêmicos da Academia Brasileira de Letras do Cárcere, são completamente diferentes e vivem o cristianismo que Cristo ensinou e não o cristianismo que é, de uma certa forma, pregado por aí, por pessoas que querem se aproveitar da ignorância do povo.