counter Nostalgia à italiana: o autor que virou um pequeno fenômeno de boca a boca no Brasil – Forsething

Nostalgia à italiana: o autor que virou um pequeno fenômeno de boca a boca no Brasil

A boa literatura italiana contemporânea, dominada pelas amizades femininas dos relatos de Elena Ferrante e pela prosa escorreita de Domenico Starnone, parecia circunscrita apenas aos autores que teorias conspiratórias acreditam ser a mesma pessoa. No entanto, um outro autor, o florentino Sandro Veronesi, quebrou essa escrita com O Colibri e Setembro Negro, lançados no Brasil há pouco tempo pela editora Autêntica. Premiados na Itália, os livros fizeram sucesso entre os críticos e, em fenômeno de boca a boca, junto aos leitores — no Brasil, foram vendidos 26 000 exemplares dos dois títulos, entre volumes físicos e virtuais. É número nada desprezível.

Autor de mais de duas dezenas de livros, incluindo romances, contos, poesias, ensaios e artigos, Veronesi, de 66 anos, é um escritor versátil e propenso a experimentar com as palavras. Contudo, o que o instala acima da planície é uma característica a um só tempo simples e difícil de alcançar, daí o imenso sucesso de agora. Diz Domenico Starnone: “Há algum tempo sei que Sandro Veronesi é um dos mais habilidosos e profundos contadores de histórias”.

O Colibri, lançado no ano passado, é uma saga familiar que remonta aos anos 1970, contada do ponto de vista de Marco Carrera, um oftalmologista de 40 anos que enfrenta a morte da irmã, um irmão ausente e uma mulher infiel, além das transformações do mundo em uma década fervilhante. Setembro Negro, que chegou às prateleiras em abril, acompanha o processo de amadurecimento de Gigio Bellandi, um adolescente de 12 anos, durante o verão de 1972, na Riviera da Versilia. Em férias com a família, ele encontra o primeiro amor e acompanha a Olimpíada de Munique, na qual ocorreu o pavoroso atentado contra membros da delegação israelense, naquele setembro que não pode ser esquecido.

IMPACTO - O Colibri e Setembro Negro: lançadas no espaço de um ano, as duas obras chamaram atenção dos críticos e, sobretudo, dos leitores
IMPACTO - O Colibri e Setembro Negro: lançadas no espaço de um ano, as duas obras chamaram atenção dos críticos e, sobretudo, dos leitores./.

Os dois romances têm em comum uma arte: o “heroísmo do dia a dia”, a linda costura de pessoas comuns enfrentando momentos trágicos e desafios da existência. Tanto O Colibri quanto Setembro Negro iluminam personagens ancorados na nostalgia de uma determinada época para evocar o presente. A ambientação no passado recente é uma forma de escapar da insatisfação com os tempos atuais, marcados por guerras, nacionalismos e o impacto da pandemia de covid-19. “Escrever um romance significa viver o tempo em que se vive normalmente e viver, com grande intensidade também, o tempo em que a história se passa”, disse Veronesi em entrevista a VEJA (leia os principais trechos abaixo). “Se eu quisesse, como fiz em outros romances, ao ambientá-los no tempo presente, teria que viver duas vezes um tempo que não gosto.”

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A literatura italiana viveu um “ressurgimento” no cenário global a partir do exterior. Veronesi liga diretamente o movimento ao período político de trevas imposto por Silvio Berlusconi, em três administrações: inicialmente em meados dos anos 1990 e, depois, no início dos 2000. Havia, é natural, interesse pelas desventuras de um país comandado por um magnata excêntrico, digamos assim. “Um povo que vai muito bem, uma democracia que vai muito bem, sem problemas e sem anomalias, não produz grandes poetas, produz cidadãos exemplares”, diz Veronesi.

Um terceiro livro de Sandro Veronesi, Caos Calmo, centrado em um salvamento que marca profundamente a vida de um executivo e de seu irmão, chegou a ser editado no Brasil, em 2007, pela editora Rocco, mas está fora do catálogo. Será relançado pela Autêntica, no ano que vem, em nova tradução. Caos Calmo e O Colibri foram adaptados para o cinema, como não poderia deixar de ser, dado o tom da prosa, pronta para ser roteirizada. O mais recente permanece inédito nas salas e streamings brasileiros. É pena. Ao contrastar o ontem e o hoje, Veronesi é um convite a refletir sobre as mudanças na sociedade, o embrutecimento das pessoas e a deterioração da vida em comunidade. É nostalgia que ajuda a pavimentar o presente.

“Prefiro contar mentiras”

Convidado da Festa Literária de Paraty, a Flip, de 30 de julho a 3 de agosto, Veronesi falou a VEJA sobre o seu sucesso recente no Brasil.

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VERSÁTIL - O autor, arquiteto de formação, escolheu a literatura aos 25 anos, quando se lançou como poeta
VERSÁTIL - O autor, arquiteto de formação, escolheu a literatura aos 25 anos, quando se lançou como poetaMarco Delogu/.

Setembro Negro parece conversar com o que estamos vivendo hoje, com as guerras na Ucrânia e em Gaza. É uma premonição? Vejo isso como um “senso do mundo” que se manifesta antecipadamente, o que é normal em um escritor. Quando comecei a escrever, não havia guerra na Ucrânia, nem o 7 de Outubro, nem a retaliação infinita de Israel em Gaza. Mas percebi que se estava indo em direção a uma degeneração e um embrutecimento dos valores nos quais eu cresci. Minha geração, que fez serviço militar, não esperava a guerra. Éramos a primeira geração para quem a guerra não era prevista, e isso nos deu esperança de pensar em um mundo melhor.

A presença de referências à cultura popular é um ponto que chama muito a atenção. Qual o objetivo? Sempre fiz isso. A música, os quadrinhos — no caso, a revista Linus foi um divisor de águas, pois informava sobre o mundo e a política. É uma parte autobiográfica. A história não é autobiográfica, é inventada, mas minha formação é muito semelhante à do personagem Gigio Bellandi. Foi assim que eu, e milhões de jovens no Ocidente daquela época, nos formamos, com a ajuda da música inglesa e americana, do esporte e dos quadrinhos. Não é escolha estética, mas reflete a influência da cultura popular, inclusive literária, na vida de uma geração.

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Qual sua opinião sobre a autoficção, um gênero que cresceu em popularidade com Annie Ernaux e Édouard Louis? Pessoalmente, não sou muito fã da autoficção e não a praticaria. Prefiro contar “balle” (mentiras) em vez de histórias verdadeiras.

Publicado em VEJA de 11 de julho de 2025, edição nº 2952

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