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A miséria de um debate

Lula resolveu dividir o país com sua campanha ricos contra pobres. É um teste para 2026. Discurso fácil, agita a militância, a turma invade o Itaú na Faria Lima, e gera algum frisson nas redes. O truque parece óbvio. A pauta dos últimos meses foi a crise fiscal. O ministro Haddad atrás de impostos, a dívida pública crescendo, o Instituto Fiscal Independente mostrando que o arcabouço fiscal é insustentável. E aí vem o troco: não há nenhuma crise fiscal, apenas ricos fugindo dos impostos. Mas não dava para fazer uma reforma na máquina pública? Cortar os supersalários, fazer reforma administrativa, rever incentivos? Esquece. É complicado, mexe com corporações, ninguém entende. O ex-presidente Michel Temer inventou essas reformas e saiu com 80% de rejeição. Melhor simplificar: a turma da Faria Lima não quer pagar mais IOF. Ponto. A guerra política expulsa a complexidade. Se vai funcionar, o futuro dirá.

Sejamos claros: a pauta de xingar os mais ricos e pedir mais impostos soa perfeita para a militância, embora seja eventualmente vazia, em sentido mais amplo, na sociedade. Para começar: de que ricos estamos falando? Quem ganha o teto do funcionalismo, no Brasil, está entre o top 1% da renda. E há muita gente ganhando acima disso. O custo é coisa de 10 bilhões de reais ao ano só em extrateto. Alguma palavra sobre isso? Os bobinhos vão invadir alguma repartição ou tribunal, pedindo para cortar penduricalhos? O.k., cortar gastos não tem graça nenhuma. Os ricos malvados seriam empresários que faturam com benesses públicas? Ou quem fez seu dinheiro no mercado, gerando valor para as pessoas? Tipos como Jeff Bezos, que dias atrás casou em Veneza e teve que aturar uma turba de delirantes tentando estragar sua festa.

O fiasco de Veneza ilustra a patetice disso tudo. O sujeito ganhou seu dinheiro por mérito, vendendo livros a menor custo. Foi casar em Veneza, doou dinheiro para a cidade, gerou negócios, mas não há o que baste. É rico, portanto malvado, logo tem que pagar mais. O curioso foi ver a reação. Enquanto a turba ativista passava vergonha, o resto da cidade, como garçons, comerciantes, motoristas e gondoleiros, ficava tremendamente irritado. Pois aquilo tudo era o seu negócio. Era um ganha-ganha, onde o rico ganha, gastando seu dinheiro, e os demais também ganham, fazendo o seu serviço. E não jogo de soma zero, como o ativista típico parece ver o mercado.

A narrativa antirricos é sedutora. Mexe com a inveja e apela para um tipo de pensamento mágico. Algo como: esqueçam os incentivos. Há uma quantidade relativamente fixa de riqueza em qualquer lugar, de modo que, se alguém tem muito, vai faltar do outro lado. O ponto é que a superação real da pobreza se dá pelo dinamismo econômico. O Banco Mundial fez um estudo analisando o recuo da pobreza na América Latina entre 2009 e 2014. A redução foi de 7,4%, sendo 6,2% por causa do crescimento da renda média e apenas 1,2% resultado da redistribuição. O que reduz a pobreza, de modo sustentável, é boa regulação econômica, ambiente favorável a investimento, educação de qualidade e não dependência em relação ao Estado. Não é por outro motivo que países oferecem incentivos para atrair pessoas com dinheiro. Estratégia para atrair investimento, consumo e dinamismo econômico. Em vez de brincar de ricos contra pobres, a pergunta que o Brasil deveria fazer é sobre como melhorar a produtividade e inserir as pessoas no mercado.

Dias atrás lia uma matéria sobre o boom de investimento provocado na área do saneamento, nos anos recentes, com a aprovação do nosso novo marco regulatório. Mistério nenhum. Segurança jurídica, competição de mercado, ambiente favorável ao investimento. Até o fim do ano que vem, metade de nossas cidades terá gestão privada do saneamento. Vai ter muito rico nesse setor. E muito, mas muito mais gente com esgoto tratado. E muita gente tomando banho na Praia do Flamengo, antes contaminada. De novo, o ganha-ganha, capaz de melhorar de verdade a vida das pessoas. Isso ao invés de retórica vazia, do nós contra eles, para ganhar uma eleição.

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“A superação real da pobreza se dá pelo dinamismo econômico”

Um ponto curioso dessa retórica é a ideia de que mais recursos nas mãos do Estado brasileiro produzirão justiça social. O Brasil tem a maior carga tributária do continente e uma incrível ineficiência governamental. Em trinta países, numa pesquisa do IBPT, somos o que menos entrega desenvolvimento humano (IDH). E ainda agora o BID mostrou que, entre 55 nações, somos a segunda menos eficiente em serviços públicos, perdendo apenas para a Venezuela. Resumo da ópera: não basta extrair mais dinheiro da sociedade, é preciso aumentar a eficiência e reduzir o custo do Estado. O Tesouro Nacional mostrou que somos o segundo país com o sistema de Justiça mais caro, 1,33% do PIB, entre cinquenta nações avaliadas. Temos o Legislativo mais caro, relativamente à renda média, e somos a democracia que mais distribui dinheiro para partidos e campanhas eleitorais. Teimamos em sustentar estatais que geram bilhões de prejuízo, pagamos jatinho grátis para dezenas de autoridades, distribuímos coisa de 7% do PIB em incentivos fiscais sem lá muito critério e temos um sistema previdenciário inviável. Os militantes podem até comprar a ideia de que cobrar mais impostos vai resolver o problema. Mas não penso que a sociedade, de um modo geral, vai cair nessa.

O próprio PT fez uma pesquisa anos atrás, com moradores da periferia de São Paulo, que mostrou que as pessoas, em geral, não acham que “o principal confronto na sociedade é entre ricos e pobres”, mas é “entre Estado e cidadãos”. E que “todos são ‘vítimas’ do governo, que cobra impostos excessivos, impõe entraves burocráticos, gerencia mal o crescimento e acaba por ‘sufocar’ a atividade das empresas”. Está tudo lá, em uma pesquisa com pessoas que vivem no mundo real, e não em uma bolha política. São cidadãos que acreditam no valor do mérito, querem ser “reconhecidos dentro da competitividade capitalista”, desejam colocar os filhos em uma escola particular e ter um convênio de saúde. Por que, “quando você está pagando, você pode exigir”. E boa parte sonha em ser empreendedora, quem sabe com uma “franquia da Cacau Show”. Tudo na contramão da distopia em que os marqueteiros da velha esquerda parecem acreditar.

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São essas questões que estarão em jogo nas eleições do ano que vem. No fundo, é um velho debate. A Instituição Fiscal Independente projeta uma dívida pública acima de 100% do PIB, em 2030. Nos tornamos um país em que a minoria, com maior renda, compra serviços no mercado, enquanto apostamos em aumentar mais e mais a dependência que os mais pobres têm do Estado. Podemos fazer de conta que nada disso existe, que não temos um problema de produtividade, que responsabilidade fiscal é discurso da Faria Lima, que tudo ficará bem se aumentarmos os impostos e os ricos pagarem mais IOF. A política, como disse antes, expulsa a complexidade. A retórica artificial criada por bons marqueteiros por vezes funciona. Alegra o ativismo digital e até pode gerar algum ganho eleitoral. Mas não resolve nenhum dos desafios que o Brasil, no mundo real, precisa enfrentar.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 11 de julho de 2025, edição nº 2952

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