Meu filho nasceu com uma das doenças genéticas mais comuns no país, a anemia falciforme. O diagnóstico foi feito no teste do pezinho, então soubemos logo quando ele tinha poucos dias de vida. Desde cedo, o Rafael teve que se acostumar com crises dolorosas, a primeira aos 11 meses de idade. Foram várias hospitalizações, transfusões, exames e remédios, mesmo tendo acesso às melhores equipes e serviços de saúde. Mas ele nunca se deixou abater ou ser definido pela doença. Extremamente aplicado, sempre leu muito. Seus volumes eram marcados por canetas e post-its coloridos. Aos 10 anos, começou a estudar teclado. Virou o único músico da família. As últimas músicas que tocou foram My Castle Town e Clair de Lune. Tocou lindamente, por sinal.
O Rafael também praticou esportes desde cedo — circo, natação, musculação, karatê… Só que a doença o limitava devido ao cansaço. Um dia, retornando do karatê, passamos em frente a uma associação que estava pedindo leite em pó para suas crianças. Ele ficou pensativo e comovido. Iríamos comemorar seu aniversário de 11 anos em uma semana. Então ele me sugeriu que, em vez de presentes, os convidados doassem leite em pó. Assim foi feito.
Aos 13 anos, meu filho já demonstrava interesse por economia e política. Dizia que queria fazer a diferença na vida das pessoas que sofriam com a falta de recursos. Aos 15, foi aprovado no curso de Business da Universidade Columbia, em Nova York, onde concorreu com adolescentes do mundo todo. Ele sonhava em cursar economia na universidade.
Foi aos 14 que o Rafael conheceu o RPG (sigla de role-playing game, tipo de jogo de estratégia em livros ou tabuleiros). Passava horas lendo e pesquisando a respeito. Logo começou a escrever seus próprios jogos, organizando as partidas para amigos e familiares — ele era o mestre e condutor da trama. Planejava publicá-los e oferecê-los de forma gratuita um dia.
Infelizmente, seu quadro clínico piorou muito nos últimos dois anos. Por isso lhe indicaram o transplante de medula. Mesmo assim, nunca ele fora tão produtivo. Fui a doadora. Como eu fazia parte da equipe médica, pude vê-lo durante toda a internação, ficando afastada apenas durante minha própria recuperação. Foram quarenta dias de hospital, isolado com o pai e o seu teclado. Quando chegou em casa, precisou manter o isolamento por causa da supressão do sistema imune. Preenchia o tempo com a escola, o videogame e a escrita. Foi quando começou a escrever seu livro, Ainda Humano, e o RPG Culto do Fim. Ainda decidiu ler A República, de Platão, para entender as bases da política.
O Rafael estava se recuperando bem do transplante, com planos de retomar o colégio, mas ele teve uma septicemia grave e fatal. Perdi meu filho de forma rápida, inesperada e abrupta. Ninguém conseguia entender. Mas a vida é assim: nem justa nem linear. Logo na semana seguinte, resolvi ler os manuscritos que ele deixou. Rafael estava animado com o livro. Dizia que era seu legado. Estava tudo lá, muito organizado e intenso, como ele sempre foi. É o meu filho, presente em cada palavra.
Ainda Humano é uma ficção sobre um futuro pós-guerra marcado pela inteligência artificial e por humanoides, cheia de reflexões e dilemas éticos. Eu me tornei a voz do Rafael e consegui publicar não só o livro como o RPG. Desde então, temos recebido, pelas redes sociais, relatos emocionados e elogiosos dos leitores, que prorrogam a vida do Rafael por meio de suas ideias. Estou feliz de ter conseguido realizar o último sonho do meu filho tão amado e apaixonado pela vida. Como ele mesmo escreveu no projeto do livro: “Tendo um corpo ou não, tudo que vivemos foi real, e continuará sendo”.
Andrea Pereira em depoimento a Diogo Sponchiato
Publicado em VEJA de 11 de julho de 2025, edição nº 2952