Em fevereiro deste ano, ocorreu o 6º Encontro do Programa Nacional de Alimentação Escolar, promovido pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), com foco na construção da Política Brasileira de Alimentação Escolar. O evento discutiu o projeto de lei de 2024, de autoria da senadora Janaína Farias (PT/CE), que visa transformar a alimentação escolar em política de Estado.
Entre as medidas propostas estão a inclusão da educação alimentar e nutricional no currículo escolar, o estímulo a práticas de vida saudáveis, e a compra de alimentos diversificados, de produção local, preferencialmente oriundos da agricultura familiar e de empreendedores rurais.
Além disso, resolução recente do Conselho Deliberativo do fundo reduz o teto de gastos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) com alimentos processados e ultraprocessados de 20% para 15% em 2025, e para 10% a partir de 2026. Também reafirma a exigência de que, no mínimo, 30% dos alimentos sejam adquiridos da agricultura familiar e de suas organizações.
Apesar das minhas críticas à classificação NOVA — que dá ênfase excessiva ao grau de processamento como critério para determinar até que ponto um alimento é saudável ou não —, considero a medida um avanço, dado que favorece a substituição de itens ricos em gordura saturada, açúcar e sódio por opções mais nutritivas.
Essa decisão representa um marco nas mudanças sobre o que as cantinas escolares passarão a oferecer — reflexo de uma antiga disputa entre o setor público e o lobby da indústria alimentícia.
Em 2020, Resolução nº 6 do PNAE passou a impor limites à frequência com que certos alimentos podem ser oferecidos: por exemplo, carnes processadas duas vezes ao mês e doces uma vez ao mês. Também limita a 20% os recursos do PNAE para compra de alimentos processados e ultraprocessados, e veta a aquisição de produtos como refrigerantes, refrescos artificiais, balas, chocolates e biscoitos recheados, entre outros.
Paralelamente, tramitava na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) o Projeto de Lei nº 891/2019, que propunha a criação de um Programa Estadual de Alimentação Escolar. O projeto previa limitar a 30% o uso de recursos do PNAE para alimentos processados e ultraprocessados, com redução progressiva a até 10% em quatro anos.
O lobby da indústria alimentícia, articulado em torno da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), contesta a lógica por trás dessas leis e regulamentos. O argumento principal é de que não se pode atribuir exclusivamente aos industrializados a responsabilidade pela obesidade. Também sustenta que problemas como diabetes, doenças cardiovasculares e cáries são multifatoriais e que o consumo isolado de certos produtos não compromete, por si só, a saúde.
Em 2023, o presidente Lula publicou o Decreto nº 11.821, que estabelece princípios, objetivos e eixos estratégicos para promover a alimentação adequada e saudável nas escolas. O decreto determina que as escolas incentivem o consumo de frutas, castanhas e iogurtes naturais, enquanto a exposição de ultraprocessados será proibida. Hortas escolares e oficinas culinárias devem incorporar a educação alimentar ao currículo.
A medida gerou reações. A deputada Roberta Roma (BA) propôs um Projeto de Decreto Legislativo para revogar o decreto presidencial, alegando que o setor de alimentos e bebidas não havia sido ouvido. O documento retoma argumentos já apresentados pela indústria, e aponta possíveis impactos econômicos e sociais.
Concordo e discordo, em partes, de ambos os lados. De fato, doenças como obesidade e diabetes são multifatoriais, e o consumo moderado de alimentos isolados não compromete, por si só, a dieta. Mas isso não invalida a importância de priorizar alimentos in natura e minimamente processados nas escolas.
Diante desse cenário, considero oportuno discutir dois temas subjacentes: as diferenças na alimentação entre escolas públicas e particulares e a relação entre o consumo de ultraprocessados na infância e a obesidade.
PNAE
Para contextualizar o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), baseei-me nos artigos “A trajetória do Programa Nacional de Alimentação Escolar no período de 2003–2010: relato do gestor nacional” e “Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) a partir da sua gestão de descentralização”.
O PNAE foi formalmente instituído em 1979 e garantido pela Constituição de 1988, mas suas origens são mais antigas. As primeiras iniciativas no sentido de organizar a alimentação escolar em escala nacional datam da década de 1950. Nos anos 1990, o programa foi descentralizado para facilitar a logística e permitir a adequação dos cardápios escolares aos hábitos locais. Atualmente, abrange creches, pré-escola, ensino fundamental e médio e Educação de Jovens e Adultos (EJA). Em 2006, foi conduzida a Pesquisa Nacional de Cardápios, que avaliou alimentos e nutrientes oferecidos em creches e escolas públicas em todas as regiões do Brasil. A pesquisa detectou deficiências e, como resultado, levou à inclusão obrigatória de, no mínimo, três porções semanais (200g) de frutas e/ou hortaliças nos cardápios.
Diante do aumento do sobrepeso e da obesidade entre escolares brasileiros, o PNAE passou a se consolidar como uma estratégia central de promoção da alimentação saudável.
A pesquisa “Conta Pra Gente, Conselheiro”, conduzida pelo Observatório da Alimentação Escolar, realizada online em 2023, coletou 513 respostas de membros de Conselhos de Alimentação Escolar (CAE), Conselhos de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e Conselhos de Educação de todas as regiões do país.
Além de apontar problemas como falta de transparência e dificuldade para fazer denúncias, os conselheiros que participaram do levantamento citaram, como dificuldades para implementar as diretrizes do PNAE, a ausência de ações de promoção da alimentação saudável (42%), baixa aceitação dos cardápios pelos alunos (28%), resistência da comunidade escolar (27%) e insuficiência de recursos financeiros para compra de alimentos (25%).
Atualização do PNAE
Em 2021, o periódico Cadernos de Saúde Pública publicou o estudo “Atualização dos parâmetros de aquisição do Programa Nacional de Alimentação Escolar com base no Guia Alimentar para a População Brasileira”, solicitado pelo Ministério da Saúde e pelo FNDE. O objetivo foi atualizar os parâmetros nutricionais do PNAE para aquisição e fornecimento de alimentos, com base nas diretrizes da classificação NOVA.
Depois de diversas análises, foram propostos os seguintes parâmetros para a participação dos grupos alimentares nos recursos federais do PNAE: 75% para alimentos in natura ou minimamente processados, menos de 20% para processados e ultraprocessados e menos de 5% para ingredientes culinários processados. Além disso, recomendou-se a proibição da aquisição de 160 dos 390 alimentos ultraprocessados registrados no programa em 2015.
Com base no Modelo de Perfil de Nutrientes da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), constatou-se que todos os 160 alimentos ultraprocessados cuja proibição foi recomendada apresentavam ao menos um nutriente crítico: 62% com alto teor de açúcar livre; 27,2% com gordura saturada; 25,9% com gorduras totais; 25,3% com sódio; 2,5% com gordura trans; e 6,3% com adoçantes.
Os dados levantados mostraram ainda que os municípios com maior aquisição de ultraprocessados tinham maior proporção de carboidratos (62,4%) e menor proporção de proteínas (12,6%) e lipídios (25,1%). Já os municípios com menor aquisição de ultraprocessados exibiram proporções mais equilibradas: carboidratos (52,1%), proteínas (17,7%) e lipídios (30,2%).
Com relação aos micronutrientes, a participação dos ultraprocessados não afetou a densidade de vitamina A, vitamina C e cálcio. Para o ferro, observou-se um leve aumento de densidade nos grupos com maior aquisição desses alimentos — um achado possivelmente relacionado à fortificação de produtos industrializados.
A partir desses dados, quatro recomendações foram elaboradas. Três delas obrigatórias: (1) inclusão de alimentos fonte de ferro heme ao menos quatro vezes por semana; (2) oferta de alimentos fonte de vitamina A ao menos três vezes por semana; (3) alimentos com ferro não heme devem ser acompanhados de fontes de vitamina C — uma maneira de melhorar a absorção do ferro. A quarta recomendação sugere que, ao longo do ano, os municípios adquiram ao menos 50 tipos diferentes de alimentos in natura ou minimamente processados, para garantir variedade alimentar.
A adoção dos novos parâmetros de aquisição tem grande potencial para melhorar o perfil nutricional das refeições oferecidas na rede pública de ensino. Será que, na ausência de diretrizes semelhantes, a alimentação das cantinas de escolas particulares se assemelha a esse modelo? Ou, sem a intervenção do Estado — “malvadão” —, o consumo de ultraprocessados é ainda maior?
Escolas privadas
Apesar de ainda escassa, a literatura científica sobre a alimentação nas cantinas de escolas privadas e no comércio informal do entorno escolar conta com contribuições importantes do projeto CAEB (Comercialização de Alimentos em Escolas Brasileiras). Essa pesquisa, apoiada por organizações como o IDEC, Instituto Desiderata e ACT Promoção da Saúde, resultou na publicação de três relatórios: um sobre a metodologia adotada, “Aspectos Metodológicos do Estudo Comercialização de Alimentos em Escolas Brasileiras”; outro voltado às cantinas escolares, “Comercialização de Alimentos em Escolas Brasileiras (CAEB): Dados das cantinas escolares”; e um terceiro sobre os ambulantes, “Comercialização de Alimentos em Escolas Brasileiras (CAEB): Dados dos ambulantes”.
O CAEB é um estudo transversal de base escolar, realizado entre junho de 2022 e junho de 2024, que investigou a comercialização de alimentos e bebidas em escolas privadas com turmas do Ensino Fundamental e Médio, nas 26 capitais brasileiras e no Distrito Federal. Foram coletadas informações com gestores de cantinas e ambulantes no entorno imediato das escolas, avaliando-se aspectos como disponibilidade, qualidade nutricional, preços e estratégias de marketing. Foram incluídas apenas escolas privadas em funcionamento, com mais de 50 alunos matriculados e ao menos uma cantina.
No caso dos ambulantes, o foco foi o entorno alimentar informal. Foram considerados elegíveis aqueles que vendiam alimentos ou bebidas prontos para consumo nas calçadas adjacentes à entrada da escola ou no quarteirão em frente à portaria. Todos os ambulantes presentes no momento da visita foram convidados a participar.
Os alimentos e bebidas comercializados foram discriminados segundo a classificação NOVA. Foram construídos 15 indicadores, incluindo a proporção de alimentos ultraprocessados, o índice de saudabilidade, a presença de publicidade de produtos ultraprocessados, e a comparação entre os preços médios de itens in natura/minimamente processados e ultraprocessados.
A triagem de elegibilidade envolveu 7.576 contatos com escolas privadas cadastradas no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Destas, 3.021 (39,9%) eram elegíveis, e 2.180 (72,2%) aceitaram participar. No total, foram avaliadas 2.241 cantinas e 699 ambulantes. Verificou-se que a maioria das cantinas é terceirizada (55,16%) com menos de cinco funcionários (77,19%).
Considerando as 26 capitais e o Distrito Federal, pouco mais da metade das cantinas (50,55%) conta com nutricionista. As análises estratificadas revelaram disparidades expressivas: cinco capitais apresentaram frequência inferior a 10%, enquanto outras cinco superaram os 75% — destaque para João Pessoa, com 93,85%. Quanto aos tipos de refeições ofertadas, 22,13% das cantinas serviam café da manhã, 23,82% ofereciam almoço e 5,48%, jantar. No entanto, a imensa maioria (92,45%) comercializava lanches.
No que se refere à escolha dos alimentos vendidos, os principais critérios citados foram: preferência dos alunos (89,64%), recomendações da escola (76,39%), produtos mais vendidos (74,43%) e conformidade com a legislação (74,96%). Apesar disso, 67,15% das cantinas relatam proibir algum tipo de alimento ou produto. Em relação à promoção da alimentação saudável, apenas 26,95% desenvolviam ações nesse sentido, e 22,17% tinham materiais educativos visíveis.
Entre os 21 alimentos in natura e minimamente processados avaliados, apenas quatro foram comercializados por mais da metade das cantinas: água mineral (79,42%), suco natural (70,54%), bolo artesanal (59,53%) e salgado assado sem recheio ultraprocessado (53,27%). Dentre os 29 alimentos ultraprocessados, os mais comuns foram refrigerantes (61,80%), salgados com recheio ultraprocessado (47,88%) e bombons ou chocolates (37,97%).
O número médio de ultraprocessados comercializados foi 50% superior ao de alimentos in natura ou minimamente processados. Também houve maior variedade média de ultraprocessados (3,09 itens) em comparação aos alimentos mais saudáveis (2,73 itens).Também houve maior variedade média de ultraprocessados (3,09 itens) em comparação aos alimentos mais saudáveis (2,73 itens).
Considerando agora os ambulantes, observou-se que a maioria se localizava no quarteirão da escola (59,8%). Quanto à estrutura física, predominavam os carrinhos (40,8%), seguidos por barracas (20,3%) e caixas térmicas ou isopores (15,9%).
A razão entre a disponibilidade de alimentos ultraprocessados e in natura/minimamente processados revelou uma média de 2,17 alimentos ultraprocessados para cada item saudável. Em termos absolutos, havia em média 4,17 itens in natura/minimamente processados e 8,18 itens ultraprocessados sendo comercializados por ambulante.
O período de coleta de dados (2022 a 2024) foi marcado por desafios relevantes. Por exemplo, o período eleitoral desacelerou as coletas entre agosto e setembro, pois muitos entrevistadores atuavam simultaneamente em pesquisas de intenção de voto. Em 2023, episódios de violência em escolas resultaram em restrições de acesso às instituições.
Escolas de alto padrão econômico — especialmente em Vitória, Fortaleza e São Paulo — negaram a realização da pesquisa em suas cantinas, o que pode ter gerado viés de seleção. Soma-se a isso a grande diversidade cultural e a complexidade geográfica do Brasil, que dificultaram o acesso a certas localidades.
Apesar dessas limitações, o estudo acende um sinal de alerta. Sem a regulamentação presente nas escolas públicas, observa-se uma maior variedade e disponibilidade de alimentos ultraprocessados, além de um preço médio quase 50% inferior ao dos equivalentes in natura, o que se traduz também em um consumo aproximadamente 50% maior.
O dado mais alarmante talvez seja o fato de que esses produtos são preferidos pelos alunos — justamente por isso são mais ofertados. É irônico: as escolas, que têm como missão ensinar conteúdos essenciais à formação dos estudantes, também deveriam liderar a promoção de práticas alimentares saudáveis.
A presença de um ou outro alimento ultraprocessado não torna a alimentação “ruim” ou, necessariamente, um risco à saúde. No entanto, isso não significa que não seja uma boa decisão substituir, por exemplo, um curau em pó — rico em açúcar — por uma maçã ou outra fruta da estação.
* Mauro Proença é nutricionista e colaborador da Revista Questão de Ciência, onde o texto foi originalmente publicado