No início dos anos 1990, a Somália vivia uma crise sem precedentes. O então presidente Mohammed Siad Barre (1919-1995) havia sido derrubado pela oposição armada e o país mergulhou em uma guerra civil. Rebeldes tomaram as cidades próximas da capital, Mogadíscio, e os conflitos fizeram com que cada região fosse controlada por uma facção diferente em busca de poder. Nesse vácuo, os civis sofriam e eram mortos aos milhares. Muitos decidiram abandonar o país e tentar a vida em outro continente. É o caso da chef de cozinha Hawa Hassan, que saiu do país africano e viajou pela Europa até encontrar um novo lar nos Estados Unidos. Durante suas viagens, percebeu que as receitas de sua família tinham um enorme poder de manter vivos os laços com a terra natal. A partir de sua própria experiência como imigrante, ela expõe como a comida é ferramenta de resistência no recém-lançado livro Setting a Place for Us (“Criando um lugar para nós”, ainda inédito no Brasil).
A obra resgata tradições e receitas de oito países, incluindo Egito, Iêmen, El Salvador e República Democrática do Congo. Ao avivar o vínculo entre comida, memória e cultura, também discorre sobre como uma reunião à mesa de jantar pode aproximar pessoas que se afastaram de suas terras de origem. “A comida é tanto um registro da agitação dos tempos de guerra quanto um talismã reconfortante de onde você veio e de quem você é”, escreve Hawa Hassan. “É o laço que o une ao seu povo, onde quer que ele esteja”.

Em casos mais extremos, quando um povo ou cultura está sob contínuo ataque, a gastronomia se tornou uma arma para preservar identidades. Em Gaza, os sobreviventes do conflito entre Hamas e Israel lutam contra a fome e se reúnem para compartilhar pratos de lentilha e pães. Na Ucrânia, uma feira de produtos artesanais acontece em Lviv, na região oeste do país, mesmo sem uma trégua declarada. É a forma pela qual os produtores de bebidas, queijos, pães e outros alimentos valorizam técnicas e saberes tradicionais.
O movimento cruza oceanos. Em São Paulo, o restaurante Shakshuka resguarda a cultura culinária dos judeus da Líbia — mais de vinte anos depois de a comunidade judaica ter sido forçada a abandonar o país norte-africano. No espaço localizado em Perdizes, bairro de classe média da capital da cidade, a proposta de Keren Ora Karman, uma das proprietárias, é oferecer receitas de sua mãe, Yaffa Admoni, adaptadas pela chef e sócia Erika Kaiser Mori. O carro-chefe é o prato que dá nome ao estabelecimento, preparado com ovos escalfados em molho de tomate e temperados com filfeltchuma, mistura de condimentos e pimentas típica da Líbia. A própria Yaffa aprova as receitas — embora sempre ache que falte picância.

Mesmo quando imigrantes não estão necessariamente fugindo de guerras, mas deixam seus locais de origem em busca de melhores condições de vida, a comida surge como elemento de conexão com as raízes. É o caso dos árabes que vieram para o Brasil ao longo do último século. Para eles, receitas tradicionais, da esfiha ao quibe, do hommus à coalhada seca, são artefatos culturais que mantém vivas suas lembranças. Prova saborosa disso está nas páginas de Brimos à Mesa (Fósforo Editora), livro recém-publicado pelo historiador e jornalista Diogo Bercito. “Para membros da terceira ou quarta geração de imigrantes, a comida é o único laço que resta com as origens. Muitos não falam árabe e nunca foram para o Oriente Médio, mas ainda fazem as receitas da família”, afirma o autor.
Enquanto alguns preparos são mantidos sem grandes alterações, outros foram modificados e ganharam toques locais, à brasileira. “Ver como os pratos se transformaram, adaptados às condições e aos ingredientes do nosso país, é um dos elementos mais fascinantes”, diz Bercito. Pela alma ou pelo paladar, a comida é memória viva, desafiando as guerras e o próprio tempo.
Publicado em VEJA de 4 de julho de 2025, edição nº 2951