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A poeta redescoberta que furou o cânone – e vai cair no vestibular

Faço um desafio ao leitor. Pense no nome de uma escritora brasileira do século XIX. Difícil vir algo à mente? Pois esse exercício espelha bem como operavam a produção e o cânone literários. Uns se consagram, outros e outras são apagados da história. Ao menos, numa espécie de reparação e redescoberta, de tempos em tempos autores esquecidos são resgatados desse ostracismo. E eles têm muito a nos dizer.

É o caso de Narcisa Amália, poeta cuja única obra publicada, Nebulosas, volta à lume com a sua inclusão na lista de livros obrigatórios da Fuvest, o concorrido vestibular da USP. Natural do interior do Rio de Janeiro, a escritora e jornalista foi reverenciada pelos críticos da época, apesar dos pendores machistas em sua recepção.

Ninguém menos que Machado de Assis escreveu em sua resenha: “Não sem receio abro um livro assinado por uma senhora”. Mas ele cede ao talento: “Achei uma poetisa, dotada de sentimento verdadeiro e real inspiração”. Páginas viradas.

Amália é expoente da escola romântica. Um romantismo engajado, contudo. Seu livro de poemas abraça causas como o abolicionismo, o feminismo e até o respeito ao meio ambiente. Páginas um tanto quanto atuais.

Seu vocabulário transborda erudição – para nenhum oitocentista botar defeito – e, de estrofe em estrofe, olhando para o céu e a terra, Nebulosas canta um atemporal hino à liberdade. São vida e obra que merecem ser revisitadas – e não só para fins de vestibular.

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Agora, podemos apreciar melhor sua poesia, com o devido suporte contextual e literário, graças ao trabalho de pesquisadores como Maria de Lourdes Eleutério. Docente da FAAP, a historiadora e socióloga estudou Amália em seu doutorado e assina a apresentação da nova edição da Editora 34, que conta com glossários e comentários poema a poema, além de fortuna crítica.

Com a palavra, a professora Maria de Lourdes Eleutério.

O que está por trás dessa redescoberta da poeta Narcisa Amália?

A redescoberta de Narcisa Amália, assim como de outras escritoras, artistas visuais e cientistas, é o que poderíamos chamar de visibilização em curso na historiografia contemporânea, contrapondo-se ao apagamento a que essas intelectuais foram submetidas durante séculos. No caso de escritoras como Narcisa Amália, o cânone literário, isto é, as regras de consagração e permanência de autoria e obra estão se transformando. Pesquisas acadêmicas, divulgação nas mídias, surgimento de editoras especializadas, publicando cada vez mais obras de autoria feminina e feminista, bem como ensaios que nos permitam compreender escritoras esquecidas, em seus contextos, têm sido uma constante.

Como a senhora conheceu a escritora?

Pesquisei a poeta pela primeira vez nos anos 1990, para minha tese de doutorado. Havia muito pouco sobre ela, hoje observamos cada vez mais interesse em estudá-la e divulgá-la. A iniciativa, de termos apenas autoras mulheres como leitura obrigatória nos próximos vestibulares da Fuvest, evidencia um propósito de ruptura epistemológica com nosso colonialismo intelectual em amplo espectro.

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Ainda assim, foi mais de um século de esquecimento, não?

A redescoberta de Narcisa Amália e a reedição de seu único livro, Nebulosas, publicado em 1872, isto é, há mais de 150 anos, nos faz refletir o porquê de relegarmos ao esquecimento versos de teor crítico sobre a sociedade de seu tempo. Tempo este que em muitos aspectos não superamos. Portanto, é oportuna a leitura dessa obra hoje, para entendermos as permanências e avanços de nossa sociedade e de nossa cultura.

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A professora Maria de Lourdes Eleutério: doutorado sobre a obra de Narcisa AmáliaFoto: FAAP/Reprodução

Entre causas sociais e até ambientais abraçadas em seus poemas, qual seria o valor mais atual e pujante dessa obra?

A meu ver, ambas as causas trazem um teor reflexivo muito relevante para a contemporaneidade. A natureza ganha cada vez mais espaço como tema de sobrevivência no planeta e a abordagem proposta por Narcisa, em chave romântica, traz ainda a infância perdida e o desejo de liberdade. Nota-se que ela vai além, na temática ambientalista, pois em sua intensa expectativa de desvendar a grandeza das “epopeias das florestas” e a “a natureza como ode imensa”, Narcisa nos provoca, em poemas como O Itatiaia e A Resende, a refletir sobre o destino de nossa natureza. Em Manhãs de Maio, ela indaga: “Ouves? A queixa túrbida das matas”, nos alertando sobre a perturbadora lamentação que devemos escutar de nossa natureza.

E ela ainda versa sobre questões como abolicionismo e feminismo…

De igual valor para a contemporaneidade são os poemas de Narcisa Amália marcados por uma consciência política de quem conhece a história do Brasil e a contesta, enquanto abolicionista, republicana e feminista. Menciono como exemplo os versos de Vinte e cinco de março, que se referem a Constituição autoritária outorgada por Pedro I. Narcisa é enfática, referindo-se ao fato como tendo sido a nação brasileira “ferida pela mão da tirania”.

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Outros poemas a destacar seriam os abolicionistas, inspirados principalmente por Castro Alves, “o poeta dos escravos”, cuja produção Narcisa Amália conhecia profundamente. Como exemplo, menciono o poema O Africano e o Poeta, que é considerado um dos mais notáveis realizados pela poética abolicionista. Ao articular perguntas e respostas entre o escravizado e o poeta, Narcisa constrói a interlocução entre dois seres que conversam, considerando, portanto, o escravizado como seu semelhante, e não como mercadoria, como eram tratados os seres humanos submetidos à escravidão até finais do século XIX no Brasil

Um desafio paira no ar: como fazer novos leitores se debruçarem sobre essa poeta que é dona de um vocabulário, digamos, um tanto cifrado aos leitores contemporâneos?

Uma contribuição fundamental para enfrentarmos tal desafio é consideramos a coragem da poeta ao desafiar padrões de cultura machista e misógina de seu tempo. Um dos seus trunfos foi a capacidade intelectual revelada por sua escrita. Ela dominava a técnica do fazer poético, era conhecedora da sintaxe, das métricas definidoras da cadência rítmica dos versos, resultado de seus estudos em latim, retórica, música, e de ser grande leitora.

Penso que os professores poderiam trabalhar esses atributos como estímulo à compreensão dessa “decifração”, não só de um profundo conhecimento da língua portuguesa. Trata-se de evidenciar como Narcisa trabalhou tais conhecimentos e habilidades para expressar em versos seu repúdio às opressões de um país patriarcal e divulgar sua luta por justiça social. São muitas camadas cifradas nesse combativo livro de uma moça que, aos 20 anos, morando no interior do Rio de Janeiro, teve sua obra lançada pela editora mais afamada que havia à época, a Garnier, sem pagar pela publicação, o que era hábito comum. Desvendar os embates que permeiam esse fazer poético deve ser um motivador para novos leitores.

A nova edição de Nebulosas se presta justamente a esse trabalho de decifração da poeta, certo?

Para facilitarmos o desafio da decifração, além de um minucioso cotejo com a primeira edição de Nebulosas, a fim de identificar e reparar erros de edições em circulação, compusemos notas que acompanham cada poema com três entradas: a explicação da epígrafe, traduzindo-a quando em língua estrangeira e mencionando dados biográficos do autor da mesma. Afinal, a escolha da epígrafe apoia um primeiro entendimento do poema. Seguem-se um glossário com as palavras de maior dificuldade de compreensão e um comentário que situa a intenção de Narcisa na elaboração do poema – quais foram as circunstâncias de sua produção, as influências literárias que impactaram.

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Tanto na apresentação quanto nos comentários foram feitas muitas referências às palavras ou expressões dela para aclarar a compreensão de um verso ou do poema como um todo. Além disso, os versos são numerados à margem direita da página e, quando mencionados no comentário, registram a referida numeração. Desta edição de Nebulosas constam, ainda, apêndices que contribuem para a compreensão da vida e obra dessa combativa escritora.

O que destacaria nessa fortuna crítica?

Destaco o luminoso ensaio A mulher no século XIX, publicado em 1882, no qual Narcisa sintetiza o percurso de luta pela emancipação da mulher e sua necessária educação, e ainda, o poema Por que sou forte, publicado em 1886, no qual a insubmissa versejadora avalia sua trajetória de conquistas e fracassos, finalizando o poema com o verso: “E eis-me de novo forte para a luta.’” Penso que vale muito o desafio!

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