Não é preciso estar ao volante de um carro 4×4 para alcançar o cume do Pico Agudo, em Santo Antônio do Pinhal. Mas a tração nas quatro rodas dá segurança para quem quer subir seus 1.634 metros. A subida é íngreme, sem pavimentação, e a pista é estreita para que dois carros passem lado a lado. Mas o esforço vale a pena. No alto, o mirante oferece uma vista deslumbrante da Serra da Mantiqueira, com sua cadeia de montanhas e vales verdes. O local é usado por praticantes de voo livre justamente pela localização, que permite trajetos longos até a área de pouso. Mais do que um dos mais belos cenários do sudeste brasileiro, no entanto, o local serve de inspiração para a criação de uma carta de vinhos que traduz a influência da geografia na elaboração de grandes rótulos.
As sommelières Daniela Bravin e Cássia Campos, conhecidas por estarem à frente da Sede 261, um dos principais redutos dos enófilos em São Paulo, eleito “Melhor Bar de Vinhos” pelo “Comer & Beber” da revista Veja São Paulo, assinam a seleção da Pousada do Cedro, um dos destinos de luxo na vibrante cena turística da região. Pela proximidade com a capital paulista, a cidade tem atraído um número crescente de turistas interessados em passar o final de semana longe da cidade, em um refúgio natural, mas com infraestrutura e opções enogastronômicas.
A carta começa com cinco vinhos, todos da Serra da Mantiqueira, mas produzidos em diferentes estados. “A cadeia montanhosa desponta como uma região promissora para a produção de vinhos finos, sobretudo por suas altitudes elevadas, acima de mil metros, que proporcionam uma amplitude térmica significativa”, diz a carta. Há um espumante da Villa Santa Maria, feito em São Bento do Sapucaí, cidade próxima de Campos do Jordão conhecida pelo projeto enoturístico. Há um Sauvignon Blanc da vinícola Três Batalhas, de Águas da Prata, em São Paulo. Um rosé, elaborado pela vinícola boutique Essenza, de Maria da Fé, em Minas Gerais, com uvas syrah. E há dois tintos: um Pinot Noir da Entre Vilas, também de São Bento do Sapucaí, e um syrah da Casa Geraldo, de Andrada, em Minas Gerais. A ideia é que esses rótulos sejam rotativos e mostrem a diversidade da produção local.
Para além dos vinhos da Serra da Mantiqueira, no entanto, a carta discute a influência da geografia na produção vitivinícola pelo mundo. Há, por exemplo, uma seção de vinhos de altitude, que mostram aromas de frutas frescas e têm taninos marcantes, com representantes de Beira Interior, em Portugal, Salta e Mendoza, na Argentina, Ribeira del Duero, na Espanha, e Vale de Elqui, no Chile. A produção fica entre 640 metros a 1700 metros de altitude. Outra categoria destaca os vinhos de vales e planícies, com aromas intensos, estrutura e textura em boca. Aqui, entram rótulos de Marlborough, na Nova Zelândia, Casablanca, no Chile, Languedoc e Côtes du Rhône, na França, e Friuli e Toscana, na Itália. Para fechar, quatro regiões clássicas do mundo do vinho: Champagne, Borgonha e Bordeaux, na França, e Piemonte, na Itália (terra do Barolo).

A importância da carta não diz respeito apenas aos vinhos escolhidos e à relevância da região como destino enoturístico, mas especialmente pelo nome das sommelières envolvidas, duas das maiores profissionais do mercado brasileiro. Para Bravin e Campos, a criação de uma carta de vinhos é uma maneira de agregar valor à experiência e preencher uma lacuna em um mercado em que nem todos os estabelecimentos contam com um sommelier próprio. Hoje, além da carta da Pousada do Cedro, as duas assinam a seleção de rótulos da Baianeira, do Abaru e do Notiê, ambas as casas sob o comando do chef Onildo Rocha, do mexicano Metzi, do novo Z Deli, e do Sororoca, além de iniciativas pontuais com outros locais badalados, como o Aiô, focado na gastronomia de Taiwan, e a seleção especial do Martin Fierro, argentino que neste ano completa 45 anos.
Mas como a dupla elabora a carta de um restaurante? “Todas têm um conceito. E nenhum vinho se repete”, conta Cassia Campos. O processo começa com o repertório, construído ao longo de mais de 10 anos de atuação. Além das degustações frequentes, que fazem com que as profissionais tenham contato com as novidades que chegam ao país, o trabalho à frente da sede 261, onde oferecem “um mar de vinhos” em taça, deu um grande repertório com que elas podem trabalhar.
No caso da Pousada do Cedro, a interpretação da geografia local e da influência da altitude dos vinhos mostra um entendimento profundo dos produtos, e como eles dialogam entre si e com as refeições servidas no local. No caso dos restaurantes, elas contam que a carta começa sempre “na cozinha“, ou seja, os rótulos oferecidos precisam estar relacionados à comida que é servida.
Cada carta é única. No Metzi, selecionaram clássicos complexos, repletos de camadas. No Sororoca, escolheram rótulos que evocam a sensação de salinidade e textura em boca como forma de representar o Sol, o sal e a areia. Na carta que fizeram para o Corrutela, em 2018, criaram uma divisão entre os solos tradicionais do mundo do vinho: granítico, calcário, argiloso e vulcânico – algo muito à frente do tempo.

Há outro critério fundamental. “Cada vinho que escolhemos tinha que ter um senso de lugar”, ou seja, tem que identificar a região onde foi produzido, como na Serra da Mantiqueira, diz Bravin. “Mas ele precisa ter tipicidade”. Se um cliente pede um syrah de Minas Gerais, espera encontrar características únicas, exclusivas daquele terroir, mas também alguns elementos comuns àquela variedade de uva.
Essa percepção foi desenvolvida ao longo de anos trabalhando na área. Cassia Campos se apaixonou pelo vinho quando cursava a pós-graduação em Food Design na Europa. Desde então, passou a estudar, tornou-se certificada como Spanish Wine Specialist em 2020, foi gerente e sommelière do Grupo Chez, até que se desligou para se dedicar ao projeto Sommelier Itinerante, de Bravin. Daniela já trabalhou com vários chefs importantes, como Benny Novak, Paola Carossela, Jefferson Rueda e vários outros. Abriu o próprio restaurante, Bravin, que funcionou até 2015. Com o projeto Sommelier Itinerante, levava vinho para eventos fora do circuito. Juntas, colecionam premiações de Melhor Sommelier de publicações especializadas.
Para elas, a criação de uma carta de vinhos é um processo artístico. “Tem um lado artístico. É uma forma de dar vazão à minha criatividade, sem criar raízes”, conta Bravin. “É também uma forma de voltar com o Sommelier Itinerante”. Em tempos de inteligência artificial, em que as pessoas recorrem ao ChatGPT para pedir indicações de harmonizações e até profissionais do setor usam a ferramenta para ajudar a vender vinhos, Daniela Bravin e Cassia Campos mostram o valor do conhecimento e da sensibilidade humana.