Será que a monogamia está fadada a se tornar um item de antiquário, ao lado de outras velharias como a bolsa pochete, as cascatas de camarões e o câmbio de automóvel com bola de caranguejo? A julgar pela euforia que se discute hoje as supostas vantagens dos chamados relacionamentos abertos, nos quais os parceiros fixos podem ter outros encontros, de forma clara e consentida, aquela idealização de vida a dois, dentro de um pacto de fidelidade, parece estar virando um hábito vintage. Segundo um levantamento recente feita pelo site de encontros extraconjugais Ashley Madison, seis em cada dez jovens da geração Z no Brasil preferem relacionamentos abertos. Foi o maior índice verificado entre os países pesquisados.
É uma enorme mudança de comportamento quando se compara o cenário atual com o de décadas passadas. Nos anos 70, mesmo em pleno advento do amor-livre, poucos se atreviam a pregar em praça pública a radicalização desse conceito. No Brasil, que vivia sob os anos de chumbo da ditadura, a patrulha comportamental exercida pela censura costumava vetar qualquer discurso progressista nesse campo, em nome da defesa da família e dos bons costumes. Alguns artistas conseguiam romper essa barreira fazendo letras metafóricas, a exemplo de Raul Seixas (1945-1989), cuja obra está sendo festejada de várias formas por ocasião dos 80 anos do nascimento do cantor, incluindo uma série em exibição na plataforma de streaming Globoplay.
Nas entrevistas, curiosamente, o grande roqueiro dizia que sua música preferida era uma romântica — A Maçã. Outra grande curiosidade em torno da obra é que a letra antecipava a pregação a favor dos relacionamentos abertos, muito antes desse tipo de comportamento ser discutido e assumido por vários casais. Assinada por Raul em parceria com Paulo Coelho e Marcelo Motta, a canção faz parte do repertório do disco Novo Aeon, lançado em 1975, no auge da popularidade do cantor.
Em cima de uma cama de arranjo orquestral, Raul começa cantando o seguinte verso: “Se esse amor ficar entre nós dois, vai ser pobre amor, vai se gastar“. Caso exista alguma dúvida sobre o que ele está falando, basta acompanhar a sequência da letra, na qual o cantor fala que o amor só dura em liberdade e que o ciúme é um problema de vaidade. Do ponto de vista masculino, ele abre portas também para a liberdade da companheira, cantando no refrão: “Se eu te amo e tu me amas, e outro vem quando tu chamas, como poderei te condenar?“. Em uma espécie de confissão, diz ainda que trilhou um caminho de evolução para se livrar da “caretice” da monogamia, até compreender “que além de dois, existem mais“. Confira aqui o clipe da música:
Essa letra é influenciada pela época em que Raul e Paulo Coelho mostravam-se devotos fiéis das ideias do ocultista britânico Aleister Crowley, famoso pelo discurso com ênfase libertária e anarquista, tendo como lema a frase “faz o que tu queres, pois é tudo da lei”. Na vida pessoal, no entanto, Raul não se comportou exatamente como ele prega em A Maçã. O roqueiro não agia de forma honesta nos relacionamentos e tinha o hábito de sumir de casa, deixando companheiras para trás quando se apaixonava por outra mulher. Teve cinco casamentos e três filhas, cada uma de um relacionamento diferente.
Triste ironia, morreu sozinho e sem dinheiro em seu apartamento em São Paulo.