Parece uma questão bizantina, mas tem implicações políticas importantes: quem será o menino apontado como a reencarnação da maior autoridade do budismo tibetano, a quem cabe o título de Dalai Lama. Aos noventa anos, o atual Dalai Lama, um refugiado que soube cultivar o mundo das celebridades, garantiu aos fiéis que outro líder espiritual o sucederá, mantendo uma linhagem que já teve catorze encarnações. O governo da China estrilou.
As palavras da porta-voz oficial Mao Ning ecoaram pelas montanhas do Tibete: “A reencarnação do Dalai Lama, do Panchen Lama e de outras grandes figuras do budismo tem que ser escolhida por sorteio numa urna de ouro e aprovada pelo governo central”.
Parece piada, como dizer que o governo da Itália precisa endossar o papa, mas tem repercussões políticas. O regime chinês foi formidavelmente eficaz em reprimir as aspirações independentistas do Tibete, o grande território que fica no teto do mundo, uma região montanhosa de população pequena, mas que equivale a um quarto da superfície da China. O Tibete foi tomado em 1950 pelo então recente regime comunista e cruelmente reprimido quando houve um levante popular, em 1959.
As manifestações de protestos começaram quando tibetanos desconfiaram que os comunistas chineses iriam sequestrar o líder do país completamente voltado para a religião e suas práticas, uma mistura única de crenças budistas trazidas da Índia e mesclada com tradições locais.
O jovem Dalai Lama precisou fugir para a Índia através das montanhas geladas, numa epopeia seguida por dezenas de milhares de tibetanos. Desde então, foi se transformando num poder paralelo – ou real, segundo seus seguidores -, um líder no exílio. Ele também aprendeu as lições da Índia e se tornou gradativamente uma figura de projeção mundial como defensor da resistência pacífica. Não falava nem em independência, mas em autonomia.
ESCOLA DO CHAPÉU AMARELO
Como um país de menos de quatro milhões de habitantes poderia resistir ao oceano humano chinês? Não resistiu, embora os sentimentos religiosos profundamente arraigados tenham tido que se adaptar: ou aceitavam a versão oficial do budismo tibetano endossa pelo regime ou fugiam.
Enquanto a China não culminou sua espetacular transformação econômica, o Dalai Lama fez sucesso em países ocidentais que não aceitavam as pressões chinesas. Também passou a circular no mundo das celebridades de Hollywood, levado por um convertido famoso, o ator Richard Gere, e de ocidentais deslumbrados com uma filosofia pacifista que prometia responder às grandes indagações da humanidade, inclusive como atravessar com consciência o período que vai da morte à nova encarnação.
Na verdade, líderes do budismo tibetano no passado não eram figuras acima das questões comezinhas. Tiveram grande influência sobre imperadores chineses, inclusive por poderes considerados divinatórios. Os mais respeitados pertenciam à Escola do Chapéu Amarelo, a mesma do Dalai Lama.
É claro que quando a China desmoronou, foram vistos pelos modernizadores como a vanguarda do atraso, uma seita supersticiosa a ser relegada à lata de lixo da história. A pretexto de dar educação e melhores condições de vida a um país miseravelmente pobre, foram feitas todas as tentativas de minar a religiosidade dos tibetanos. O regime comunista interferiu até na escolha do Panchen Lama, a segunda maior autoridade religiosa, escolhendo um nome sancionado pelo Estado.
RECEPTOR DA ALMA
Os seguidores do budismo tibetano acreditam que a alma do líder falecido reencarna num menino que precisa ser identificado por uma série de sinais, alguns deles secretos. O próprio Dalai Lama foi escolhido quando tinha apenas dois anos e vivia com a modesta família de agricultores. Quando viu objetos pertencentes ao Dalai Lama anterior, proclamou: “São meus, são meus”.
Ele esperou até os noventa anos para anunciar que seu sucessor, o receptor de sua alma, será escolhido da mesma maneira – e não será na China. Será reconhecido pelos tibetanos no exílio e, muito provavelmente, no coração dos seguidores da religião sob controle chinês. Pelo menos é o que experiência indica: o Panchen Lama chancelado pelo regime comunista sumiu do mapa.
A causa pela liberdade do Tibete, evidentemente, é nobre. Todos devem ter o direito de seguir a religião ou as crenças que quiserem. É um dos princípios mais fundamentais dos direitos humanos.
Não é, infelizmente, uma causa ganhadora. Nem o caráter divino do Dalai Lama, segundo os fiéis, muda isso.