Trabalho com temas relacionados à pobreza e à desigualdade desde meados dos anos 1980. De lá para cá, muita coisa mudou, mas não o suficiente para alterar o intricado xadrez da mobilidade social no país.
Os dados do recém-lançado Atlas da Mobilidade Social, do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social, mostram em detalhes o tamanho do problema. Inédita, a plataforma traz informações de todas as regiões e dados desagregados por sexo, cor/raça e escolaridade dos pais.
As estimativas de mobilidade intergeracional de renda foram calculadas usando métodos modernos de mensuração da mobilidade social e dados administrativos da Receita Federal, dos Ministérios do Trabalho e Emprego e do Desenvolvimento Social e pesquisa domiciliares do IBGE.
De forma geral, no Brasil, a chance de uma criança não branca permanecer na metade mais pobre da população é de 71,8%. No caso das brancas, o percentual é de 54,8%. A probabilidade é que menos de 2% do total consiga terminar uma faculdade e apenas metade chegue ao fim do ensino médio.
Nas regiões Norte e Nordeste, a chance (78,3% e 76,4%, respectivamente) de crianças na metade mais pobre permanecerem no mesmo patamar que seus pais na vida adulta é muito maior do que no Sul (41,4%). No país como um todo, a probabilidade de uma criança que faz parte desse grupo ascender entre os 10% mais ricos quando adulta é de 1,8%.
FALTA IGUALDADE DE OPORTUNIDADES
Por que a mobilidade social é ainda tão baixa no país? Onde estamos errando? “Se tivesse que responder em uma frase essas perguntas, diria que não existe nada parecido com igualdade de oportunidades no Brasil”, afirma em entrevista exclusiva à coluna o economista Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central (1999-2002) e um dos fundadores do Instituto de Mobilidade e Desenvolvimento Social.
A igualdade de oportunidades a que ele se refere tem a ver, inclusive, com a oferta de políticas públicas de qualidade em áreas como saúde, educação, segurança e saneamento básico. “Todos esses aspectos conspiram para fazer a vida das pessoas melhorar”, diz ele.
A questão da mobilidade é complexa. Para que avance, é preciso melhorar o acesso a essas políticas. Também é necessário, segundo ele, um “enorme repensar dos gastos públicos”. “O Estado arrecada mal, gasta mal e sobra pouco para investir no social”, afirma no artigo Estado, Desigualdade e Crescimento no Brasil.
Políticas educacionais e de transferência de renda, como o Bolsa Família, são, claro, importantes na mobilidade social, mas não bastam. Para Fraga, o Brasil precisa investir em uma reforma do Estado.
O DESAFIO DAS REFORMAS
“Repensar o gasto público é, para mim, um desafio no mínimo tão grande quanto o de ter juros mais normais no país”, defende. “A gente esquece que se esse dinheiro for mais bem gasto, isso não só vai trazer mobilidade social como acelerar o crescimento.”
Hoje, segundo o economista, os pobres pagam quase o mesmo imposto como proporção de sua renda que os mais ricos, mas recebem pouco em troca. Para Arminio Fraga, é importante o Brasil começar a discutir a sério uma reforma administrativa que englobe, a longo prazo, também estados e municípios – não só o governo federal.
Isso implica avaliar políticas públicas e também as pessoas, repensando as carreiras e os próprios mecanismos de avaliação. “Essa ainda é uma lacuna. O Brasil precisa fazer muito mais disso”, avalia.
“Quando a gente olha para o gasto público como um todo, quase 80% do gasto primário é com funcionalismo e previdência. Os números mostram um país totalmente fora da curva”, diz Fraga, que defende uma reforma do Estado para que se possa investir em melhorar os serviços para a população.
Tanto como proporção do PIB quanto como proporção do gasto total, o Brasil, segundo ele, gasta bem mais com funcionalismo do que a maioria dos países do Ocidente.
Para o economista, também já está na hora de rediscutir a Previdência. “Os números são apavorantes”, lamenta.
Para liberar recursos, ele acredita que, grosso modo, será necessário reformar mais a Previdência, reformar o Estado (em particular a parte administrativa) e promover uma relevante redução de subsídios e gastos tributários. Ao longo do tempo, essas reformas contribuiriam para a redução da desigualdade.
“Em um país como o Brasil, com elevada incidência de pobreza e enormes desigualdades de oportunidades, criar mecanismos de aumento da mobilidade social é um imperativo econômico e moral”, diz Paulo Tafner, diretor-presidente do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social, na apresentação do seu relatório anual.
O cenário revelado pelo Atlas da Mobilidade Social mostra que essa é uma reflexão não apenas necessária, mas urgente, para que o país possa de fato crescer e ter um desenvolvimento inclusivo, sem deixar ninguém para trás.
* Jornalista e diretora da Cross Content Comunicação. Há mais de três décadas escreve sobre temas como educação, direitos da infância e da adolescência, direitos da mulher e terceiro setor. Com mais de uma dezena de prêmios nacionais e internacionais, já publicou diversos livros sobre educação, trabalho infantil, violência contra a mulher e direitos humanos. Siga a colunista no Instagram.