Em O sentido das águas: Histórias do rio Negro (Ed Companhia das Letras), Drauzio Varella, 82, relata os mais de trinta anos de viagens pela região amazônica. Desde “conversar e ver como vivem os ribeirinhos e os indígenas dispersos pelas beiradas dos rios, sobrevoar a floresta nos aviões da FAB, chegar até os pelotões do Exército Brasileiro nas fronteiras com Colômbia e Venezuela, caminhar pela mata, percorrer rios e escalar o Yaripo (pico da Neblina)”. A coluna GENTE seleciona aqui dois trechos, entre as aventuras do médico, que quase custaram sua vida.
“Numa outra vez, encontrei por acaso uma amiga de São Paulo que voltava de uma visita a Maturacá, aldeia Yanomami, vestindo uma bermuda. Sem exagero, as picadas nas pernas eram tão próximas umas das outras que não deixavam dois centímetros de pele intacta entre elas. Tive que medicá-la com cortisona para que ela suportasse a coceira e para evitar complicações alérgicas mais graves. Foi numa das parcelas botânicas mantidas pelo projeto no rio Cuieiras, afluente que desemboca no Baixo Rio Negro, que um mosquito me transmitiu o vírus da febre amarela, doença terrível que me deixou hospitalizado por três semanas e por pouco não me fez perder a vida aos 61 anos”.
“Numa manobra de rotina para desviar de um galho que obstruía a passagem, a voadeira bateu num arbusto à direita. Colisão insignificante, não fosse pelo zumbido ao qual deu origem. Um enxame de abelhas veio para cima de nós. Na tentativa de espantá-las, alguns se levantaram e o barco ameaçou virar. Uma abelha entrou no meu ouvido. Ao tentar expulsá-la, tomei uma ferroada na ponta do dedo, acompanhada de umas vinte ou mais no rosto, no pescoço e nos braços. A dor, o zumbido enlouquecedor e os embates da abelha prisioneira na membrana do meu tímpano, sem que eu conseguisse desalojá-la, me lançaram num desespero difícil de controlar. Impossível não lembrar na hora dos relatos de morte em ataques semelhantes. A única salvação seria me atirar na água. Desequilibrado na voadeira oscilante, eu já estava tirando o tênis quando a zoada arrefeceu”.