A decisão do Supremo Tribunal Federal que flexibiliza o artigo 19 do Marco Civil da Internet é um passo importante no esforço de proteger a democracia diante da lógica predatória das grandes plataformas digitais.
O entendimento da corte é claro: não basta mais esperar uma ordem judicial para agir diante de conteúdos ilícitos — em especial nos casos de crimes graves, como racismo, incitação à violência, ataques a mulheres, crianças e ao Estado Democrático de Direito.
Com isso, o STF atualiza a jurisprudência brasileira ao reconhecer que o modelo atual favorece a omissão. Plataformas que monetizam desinformação e discurso de ódio não podem continuar protegidas por uma interpretação literal de 2014, alheia aos riscos que se agravaram com a radicalização algorítmica e o uso político dessas ferramentas.
O ministro Alexandre de Moraes, que já vem protagonizando embates com figuras como Elon Musk, foi direto ao ponto — como já registramos aqui na coluna em março: “As big techs têm lado, têm posição econômica, religiosa, política, ideológica — e programam seus algoritmos para isso”.
A decisão do STF também joga luz sobre episódios anteriores de supressão de alcance nas redes. Em maio de 2024, a produtora Paula Lavigne denunciou publicamente que postagens feitas por artistas em defesa da remuneração de conteúdos jornalísticos e culturais tiveram alcance drasticamente reduzido. Mesmo com apoio de nomes como Anitta, Emicida e Zélia Duncan, as redes pouco distribuíram o conteúdo. Na época, o episódio foi interpretado como um caso emblemático de censura algorítmica por sufocamento digital — silenciosa, eficaz e lucrativa.
A decisão também rompe com a omissão histórica do Legislativo. Ao modular os efeitos do artigo 19 do Marco Civil, os ministros reconheceram que a regra anterior não dava conta de proteger a democracia — e estabeleceram um novo regime em que plataformas serão responsabilizadas por omissão em casos de crimes graves, uso de robôs, impulsionamento pago e falhas sistêmicas de moderação.
Pela primeira vez, ficou explícito que liberdade de expressão não é escudo para redes que permitem golpismo, misoginia e discurso de ódio sem reação imediata. A tese aprovada ainda determina que as plataformas mantenham sede jurídica no Brasil, canais permanentes de denúncia e relatórios públicos de transparência, submetendo-se a deveres que até então driblavam sob o manto da neutralidade tecnológica.
A posição do STF não é apenas correta — é necessária. Garante que o país não se torne refém de códigos opacos, decisões unilaterais e interesses extraterritoriais. Reafirma que a liberdade de expressão termina onde começa o crime — e que, sim, há responsabilidade civil quando há omissão deliberada.
Não se trata de censura. Trata-se de defesa. De democracia. E de lembrar que, por trás de todo “post”, há uma política — e, muitas vezes, um algoritmo com dono.