Três réus devem passar a manhã desta terça-feira (24/6) no Supremo Tribunal Federal tentando fazer com que prevaleçam as suas versões sobre a conspiração no final de 2022 para um golpe de estado liderado por Jair Bolsonaro, que perdera a reeleição na presidência da República.
Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa e na época candidato a vice-presidente, vai enfrentar o coronel Mauro Cid, antigo ajudante de ordens de Bolsonaro que aceitou um acordo de delação premiada. Ambos são acusados por crimes contra o regime democrático, mas sustentam versões contraditórias sobre aspectos relevantes das respectivas participações na trama golpista. Por isso, devem se confrontar em audiência judicial.
Na sequência, haverá acareação de outro réu: Anderson Torres, ex-ministro da Justiça, vai enfrentar Marco Antônio Freire Gomes, ex-comandante do Exército, testemunha de acusação. Torres pediu o confronto por achar inconsistente e prejudicial o relato que Freire Gomes fez ao tribunal sobre a sua participação nas reuniões em que se discutiu a alternativa de golpe de estado — rejeitada pelos comandos do Exército e da Aeronáutica.
O STF decidiu fazer audiências fechadas, sem imprensa, num julgamento absolutamente incomum de autoridades de um governo civil, eleito em 2018, acusadas de conspiração contra o regime democrático para se manter no poder, depois da derrota nas urnas em 2022.
São raros os confrontos judiciais entre oficiais militares por ativismo político. A mais relevante acareação do gênero aconteceu na manhã de quinta-feira 27 de janeiro de 2000.
Numa sala do Quartel General do Exército, em Brasília, diante de sete oficiais militares, se enfrentaram os generais Octavio Medeiros, chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), e Newton Cruz, chefe da Agência Central do SNI.
Medeiros contou que o general João Batista Figueiredo, último presidente do regime ditatorial de 1964, havia sido informado por ele, com mais de um mês de antecedência, sobre a preparação de um atentado terrorista no show de 1º de Maio de 1981, no Riocentro.
Além de Figueiredo, o então chefe do Gabinete Militar da Presidência, general Danilo Venturini, também soube do atentado preparado no Destacamento de Operações de Informações (DOI) do 1º Exército, no Rio.
A revelação sobre o conhecimento antecipado de um ato terrorista organizado dentro de um quartel do Exército e a difusão dessa informação pela hierarquia do governo militar foi confirmada, documentada e assinada pelo chefe do SNI em depoimentos no segundo Inquérito Policial Militar sobre o atentado no Riocentro.
Os generais Figueiredo, Venturini, Medeiros e Cruz nada fizeram e, um mês depois, na noite de quinta-feira 30 de abril de 1981, duas bombas explodiram em torno do pavilhão onde milhares de pessoas ouviam Elba Ramalho cantar “Banquete de Signos”.
Uma bomba detonou no colo do sargento paraquedista Guilherme Rosário, dentro do carro em movimento, um Puma conduzido pelo capitão de infantaria Wilson Chaves Machado. O sargento morreu, o capitão ficou ferido e sobreviveu. Serviam no DOI do 1º
Exército, com jurisdição sobre os estados do Rio, Minas e Espírito Santo. Minutos depois, outra bomba abriu um buraco no chão em frente à central de energia, sem danos. O espetáculo continuou. Trinta artistas participavam daquele show pelo Dia do Trabalho promovido pelo Centro Brasil Democrático (Cebrade), vinculado à oposição ao regime militar.
O general Medeiros apresentou sua versão no IPM, pela primeira vez, no final de 1999. Contou que “de um mês e meio a um mês antes de 30 de abril”, soube pelo subordinado Newton Cruz (chefe da Agência Central do SNI) do “projeto de uma operação que seria realizada por dois elementos do Destacamento de Operações de Informações do 1º Exército no Riocentro, mas que “foram dissuadidos”. Achando o caso “contornado”, ressalvou, não avisou a “nenhuma autoridade do Exército ou da administração do Estado do Rio”. Deliberadamente, omitiu nesse depoimento um detalhe: informara o presidente e o chefe do Gabinete Militar.
O general Cruz ao depor apresentou versão diferente: “Soube da possibilidade de ser lançada uma bomba no estacionamento do Riocentro, por dissidentes do DOI, cerca das vinte horas do dia 30 de abril de 1981”. Foi informado por telefonema de um subordinado, o chefe de Operações do SNI, Ari Pereira de Carvalho.
Nessa versão, Carvalho teria sido alertado sobre plano de atentado pelo coronel Freddie Perdigão Pereira, da agência do SNI no Rio. O general Cruz contou: “Perdigão os demovera, os convencera a colocar a bomba em local afastado, de modo a não causar
danos pessoais ou materiais, e estava indo junto com eles. Não havia o que fazer, eles não estavam lá para matar ninguém”. Ressalvou “não se lembrar” de ter avisado seu chefe, Medeiros. Disse achar que “não o fez antes dos acontecimentos, só depois”.
Restava um conflito de datas. Um general (Medeiros) dizia que soubera cerca de um mês antes. Outro (Cruz) alegava ter sabido na noite do atentado, com uma hora de antecedência. Essa divergência motivou a acareação dos principais chefes do SNI.
No comando do inquérito, o general Sérgio Ernesto Alves Conforto recebeu-os na manhã de quinta-feira 27 de janeiro de 2000. Na sala do QG do Exército estavam, também, um procurador, um escrivão e dois coronéis como testemunhas.
Medeiros reafirmou diante do subordinado ter sido informado por ele (Cruz) sobre o atentado no Riocentro “de um mês e meio a um mês” antes. Revelou, então, que “transmitiu esse conhecimento ao presidente e ao general Venturini”, chefe do Gabinete Militar. Ao ouvir a confissão de Medeiros, Cruz criou “um momento de maior tensão” — anotou o encarregado do IPM. E retrucou o ex-chefe: — Mentira!
Medeiros devolveu: — Você não lembra? — Repetiu ter repassado a informação recebida de Cruz ao presidente da República e ao chefe da Casa Militar.
Foi quando Cruz arrefeceu o tom de voz, sugerindo um “engano” de Medeiros: — Talvez o fato a que se refere diga respeito a outro evento.
“Permaneceram em suas posições de opinião”, contam os autos preservados nos arquivos do Superior Tribunal Militar. A acareação, revelada por O Globo em 2014, foi importante porque ajudou a iluminar um episódio essencial para a compreensão da anarquia nos quartéis, durante a ditadura que levou as Forças Armadas ao maior desastre de sua história.
No fim da audiência, Medeiros e Cruz eram dois velhos amigos conversando sobre fatos “que os teriam afastado”. Terminaram abraçados. “Emocionados”, o escrivão fez questão de registrar.