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Por que ser gentil é uma estratégia evolutiva, segundo a ciência

A ética, a moral e a própria lei sempre pareceram pilares construídos para tentar domar nosso instinto egoísta de sobrevivência, aquilo que Max Weber enxergava como a dimensão impulsiva e perigosa da natureza humana. Mas e se a ciência provasse o contrário? E se os princípios mais sagrados, que pregam a paz, a justiça e a colaboração, não fossem meras regras sociais, mas o resultado inevitável de uma matemática evolutiva?

Bem-vindo à Teoria dos Jogos, o campo da matemática que estuda como indivíduos escolhem estratégias para maximizar seus resultados. Os cientistas descobriram que, seja você um animal brigando por comida ou uma pessoa resolvendo um problema no escritório, a melhor tática a longo prazo é, surpreendentemente, a benevolência.

Talvez o mais clássico dessa área seja o Dilema do Prisioneiro. Imagine dois suspeitos presos em salas separadas. A polícia oferece o mesmo acordo a ambos: se você trair o parceiro e ele ficar calado, você sai livre e ele pega 10 anos de cadeia. Se ambos traírem, ambos pegam 5 anos. Se ambos se ajudarem (permanecerem em silêncio), a pena é mais leve: apenas 1 ano para cada.

Aí reside a armadilha lógica. É comum pensarmos: “Se o meu parceiro ficar quieto, é melhor eu trair (afinal, saio livre e não fico um ano na prisão). Se o meu parceiro me trair, é melhor eu trair também (pego metade da pena)”. Independentemente do que o outro faça, a decisão puramente racional é trair. O resultado? O medo do egoísmo alheio destrói o ganho coletivo.

A vitória da benevolência

Na década de 80, o cientista político Robert Axelrod transformou esse dilema num campeonato de programação. Ele convidou acadêmicos para criar “personas digitais” que jogariam o Dilema do Prisioneiro milhares de vezes uns contra os outros. Havia programas complexos, traiçoeiros e vingativos. Mas quem venceu o torneio foi o código mais simples de todos: o que usou o método Tit-for-Tat (“Olho por Olho”).

Sua lógica era elementar. Em resumo, nunca inicie a agressão (comece cooperando); seja recíproco (se o outro for legal, continue sendo legal); e não seja bobo (se for traído, revide imediatamente na próxima jogada). Entretanto, estudos posteriores revelaram uma falha no Tit-for-Tat puro. No mundo real, cheio de ruídos e erros de comunicação, uma traição acidental poderia gerar um ciclo infinito de vinganças. Foi aí que a matemática descreveu uma estratégia ainda superior: o “Tit-for-Tat com Benevolência” (ou Generous Tit-for-Tat).

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Essa versão evoluída adiciona uma pitada de complexidade ao perdão. Assim, ocasionalmente, mesmo após ser traído, o programa “oferece a outra face” para quebrar o ciclo de ódio e restaurar a cooperação. A história humana valida esse algoritmo.

Durante a Primeira Guerra Mundial, soldados ingleses e alemães criaram espontaneamente o sistema “Viva e Deixe Viver” ao cessar fogo em certos horários e evitar mirar para matar. Intuitivamente, percebiam a matemática do jogo. Atacar sem necessidade só prolongava o ciclo de retaliações e reduzia as chances de sobrevivência de todos. A benevolência estratégica, pois, salvou milhares no front.

A evolução da ética

Axelrod simulou a seleção natural baseada nesses princípios. As estratégias que faziam mais pontos “sobreviviam”. O cenário foi rapidamente dominado por táticas cooperativas. Isso é o que os biólogos chamam de Estratégia Evolutivamente Estável. Tal tática funciona como um sistema imunológico social: ele é aberto a conexões, mas, se detecta um eventual “vírus” (um traidor), a retaliação é ativada para proteger o sistema.

É fascinante notar como essa lógica não pertence a uma única cultura, mas ecoa em códigos legais, religiosos e filosóficos de toda a humanidade.

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No Budismo, por exemplo, a ideia de não iniciar a agressão aparece quando o Dhammapada ensina que “o ódio cessa com o amor”, refletindo o impulso do algoritmo de sempre começar oferecendo a paz e evitar ciclos desnecessários de retaliação. Já o Islã destaca a reciprocidade, a troca direta e positiva que sustenta a cooperação, resumida no verso do Alcorão que pergunta: “Haverá outra recompensa para o bem que não o bem?” (Surata Ar-Rahman, 55:60).

No campo jurídico, o princípio da justiça proporcional surge na própria Constituição Brasileira, que garante “o direito de resposta, proporcional ao agravo”, ecoando a exigência matemática de reagir à traição na medida certa, sem vingança excessiva. E, por fim, a noção cristã de perdão reforça a última regra do algoritmo: perdoar quando o outro volta a cooperar. Jesus ilustra isso ao ensinar que se deve perdoar “setenta vezes sete”, indicando que, havendo mudança real de comportamento, o ciclo do mal deve cessar. É, em diferentes linguagens humanas, a matemática evolutiva aplicada à convivência.

Por que o crime (matematicamente) não compensa?

O estudo das Estratégias Evolutivamente Estáveis nos dá uma visão otimista. A sociedade ideal não é feita de ingênuos, mas de um ambiente onde a traição custa caro e a cooperação é previsível.

Quando temos um sistema de justiça eficiente (que faz o papel do “vingador” contra quem quebra as regras), o indivíduo sente-se seguro para baixar a guarda e cooperar. Quanto mais garantimos que o “esperto” se dê mal, mais a bondade mútua se torna a norma dominante.

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Imagine a sociedade como uma colmeia evolutiva: se você der o seu mel, a matemática diz que receberá mel de volta. Mas o ferrão está ali, pronto e afiado, apenas para garantir que ninguém roube a doçura da cooperação.

Rafael Scherer é médico e expert em inteligência artificial. Gustavo Rosa Gameiro é médico e cientista, membro do programa de jovens lideranças médicas da Academia Nacional de Medicina.

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