Sempre quis ser mãe, e Miguel foi a criança com quem sempre sonhei. O nome dele foi ideia da minha comadre, porque a gente frequentava a Capela de São Miguel Arcanjo em Bonança (PE). Já Otávio é um nome forte e próspero. Eu tinha um sonho de que ele se tornasse médico ou advogado para ser chamado de doutor Otávio. Por isso juntei os dois: Miguel Otávio. Na gestação, minha barriga ficou enorme, até me perguntavam se eram dois bebês. Dizem que, quando o bebê é bonito, ele tira toda a beleza da mãe, e foi isso que aconteceu. Meu filho nasceu saudável, um bebezão cabeludo, carinha redonda, do jeitinho que eu sonhei. Era uma criança doce, que vendia felicidade. Eu fazia de tudo por ele.
Até o seu primeiro ano de idade, a gente morava no sertão e eu trabalhava só nos fins de semana. Depois fui correr atrás de outro emprego e, como não encontrava algo na minha região, apareceu uma oportunidade de me mudar para Recife, e fui. Meu ex-marido já trabalhava lá. Foi a primeira vez que trabalhei numa casa de família, a de Sarí Corte Real (ex-primeira-dama de Tamandaré, PE). Fiquei fixa lá quando ela engravidou. Em alguns momentos, precisava levar o Miguel junto comigo e, nesse tempo, já estava separada do pai dele. Mas foi na pandemia de covid que meu filho passou a frequentar mais a casa da minha ex-patroa. Ela não me dispensava e não tinha creche nem escola aberta.
Pediram para que eu, minha mãe e Miguel fôssemos para a mansão da família em Tamandaré para nos proteger do vírus. Mas logo depois começaram a chegar pessoas de fora, faziam churrascos e festas, e a suposta segurança acabou. Nessa época, cheguei a ficar doente, muito mal e com febre. E continuava trabalhando. Pensava que ia morrer e não ver mais meu filho. Um dia, a filha de Sarí ficou doente e me mandaram a Recife. Em uma segunda-feira, ela pediu para eu chegar mais cedo, mas precisava levar minha mãe para buscar um remédio no posto. Não queria ir com Miguel com medo do vírus e Sarí disse que ele podia ficar no apartamento dela. Voltei, as crianças estavam brincando e ela me mandou descer com a cadela para passear. Ia levar meu filho junto, mas ela falou que era para deixá-lo no quarto brincando. Eu confiei nela. Quando voltei, encontrei meu filho daquele jeito. Prefiro nem falar (Miguel caiu do nono andar do edifício).
O vídeo captado pelas câmeras do prédio que mostra meu filho no elevador tem uns quatro minutos. Em seus depoimentos, Sarí disse que estava mandando ele sair, mas ele ia de um elevador para outro. Em nenhum momento, ela me ligou para dizer que ele estava com rebeldia. O fato é que Sarí apertou o botão da cobertura e voltou para fazer as unhas. Abriu mão do meu filho. Então, houve negligência, sim. A perícia confirma que ela cometeu o crime de abandono de incapaz, que resultou na morte do meu filho. Ela nega, diz que é inocente e está respondendo ao processo em liberdade, com pena reduzida para sete anos de prisão, o que é lamentável. Se fosse o contrário, isso não ia acontecer.
Mesmo enfrentando uma família de influência em Pernambuco, nunca senti medo. Nada vai me intimidar. Pelo meu filho, enfrento o que for. Em 2021, um ano depois que ele morreu, comecei a faculdade de direito. Não foi um sonho ou algo que queria. Foi pela necessidade de conhecimento para entender o andamento do processo e para, no futuro, ajudar outras pessoas a não passarem pelo que eu passei. São cinco anos da perda do meu filho agora. Apresentei meu projeto de conclusão de curso sobre trabalho escravo contemporâneo e direitos fundamentais dos trabalhadores domésticos e consegui a nota máxima. Nele falo sobre avanços e retrocessos. Vou prestar OAB e continuar lutando por justiça. Faço isso pela memória do Miguel, que teve uma vida e um futuro apagados. Penso na minha luta como uma semente de mudança.
Mirtes Santana em depoimento a Paula Felix
Publicado em VEJA de 20 de junho de 2025, edição nº 2949