A adaptação de clássicos da literatura para o universo dos videogames é um terreno fértil, embora pantanoso, em frágil equilíbrio entre a homenagem respeitosa e a descaracterização comercial. No mercado de jogos eletrônicos, transformar palavras imortais em diversão levanta uma questão inevitável: clássicos funcionam no joystick, na palma da mão, nos smartphones, ou são “biscoito fino” demais para a massa? A resposta passa por um exemplo de relativo sucesso, o Dante’s Inferno, a transformação da Divina Comédia em uma saga de ação visceral no PlayStation 3. A discussão — funciona ou não funciona — ganha especial relevo agora, com uma aposta brasileira. O estúdio paulistano Mother Gaia está lançando A Investigação Póstuma, título que adapta e reinventa a obra de Machado de Assis para uma nova geração, transportando o jogador para o Rio de Janeiro do início do século XX.
Diferente da abordagem prenhe de pancadaria de Dante’s Inferno ou a ação mercurial do The Witcher — também nascido da literatura, baseado em contos de um autor polonês —, a narrativa machadiana segue o caminho do mistério. A ideia: instalar o cidadão na pele de um detetive contratado pelo próprio Brás Cubas para investigar seu assassinato, utilizando uma mecânica de loop temporal, que permite reviver o mesmo dia sob diferentes perspectivas. O objetivo central não é apenas replicar o livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, mas criar um verdadeiro “Machadoverso”. Segundo os desenvolvedores, o jogo usa também outras obras do gênio fluminense, inserindo personagens icônicos em uma trama de investigação.
A gênese do projeto, curiosamente, não começou com Machado. Bruno Toledo, diretor de criação da Mother Gaia, revela que a semente foi plantada em 2014, durante uma maratona de desenvolvimento rápido: “Fizemos um jogo de investigação em poucos dias e, nesse protótipo, no final, você encontrava com a vítima, que falava sobre seu progresso na investigação”. A conexão com o defunto-autor mais famoso do Brasil foi, nas palavras de Toledo, um processo natural ao revisitarem o projeto anos depois para um edital da Ancine. “Fazer a ligação com o Brás Cubas foi meio natural, porque a gente já gostava de Machado de Assis”, conta o desenvolvedor. “Mas precisava ter algo mais.”
A transição do papel para o digital exigiu mais do que programação — demandou uma imersão literária profunda. A equipe de cerca de vinte profissionais mergulhou nos romances para costurar as pontas soltas de histórias distintas. “A gente leu, releu, ouvia audiolivro quando estava lavando louça, tentando pescar momentos que autorizariam conexões entre obras”, diz Toledo. O sonho, portanto, nunca foi o purismo acadêmico, que poderia afastar o público gamer, mas, sim, a liberdade criativa. A equipe buscou fazer uma grande adaptação de vários personagens, misturando histórias do Bruxo dentro de um ambiente completamente diferente, resultando em uma obra que ele classifica mais como “releitura” do que adaptação estrita.

Essa liberdade permitiu flertar com o gênero noir, criando uma atmosfera de suspense que se distancia do fracasso comum de adaptações que tentam ser “livros interativos”, mas sem alma. Para evitar o tédio e garantir a imersão, o estúdio investiu pesado na localização e na atuação. Um dos grandes trunfos de A Investigação Póstuma é a presença do ator Rodrigo Lombardi, que dá voz a Brás Cubas. A parceria surgiu de forma quase fortuita através da publicadora Nuuvem/CriticalLeap. “Percebemos que alguns momentos do jogo precisavam de dublagem e o Lombardi encaixou muito bem com o personagem”, celebra Toledo.
No entanto, o desafio comercial permanece. Jogos puramente narrativos ocupam um nicho específico, que muitas vezes fracassa, por ser aborrecido. Toledo reconhece a dificuldade, mas sabe ter tomado a boa estrada. “A força do nosso jogo é o poder narrativo”, diz, ressaltando, porém, que o título é acessível para quem não tem “habilidades ou experiência em outros jogos”. Essa acessibilidade é a chave para evitar o fracasso de público: atrair não apenas os “gamers”, mas também os amantes das belas-letras e do audiovisual que buscam uma boa história interativa.
O desenvolvimento enfrentou os percalços da pandemia de covid-19, com o trabalho remoto dificultando a troca de ideias inicial, mas o projeto seguiu firme com financiamento da Ancine e investimento próprio. Agora, com lançamento previsto para o início de 2026 para computadores, o jogo quer provar que a literatura brasileira tem força para conquistar o mercado global de games.
Se Dante’s Inferno provou que o inferno clássico pode ser divertido na base da espada, A Investigação Póstuma quer provar que a ironia e o cinismo podem ser igualmente cativantes. Resta saber se o público abraçará o projeto com a mesma paixão com que abraça os clássicos da ação, ou se ele permanecerá como uma joia cult para poucos apreciadores. E fiquemos, então, com uma frase da obra-prima, caso dê errado: “Não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes cair das nuvens que de um terceiro andar”.
Publicado em VEJA de 19 de dezembro de 2025, edição nº 2975