“A história se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.” A frase de Karl Marx, extraída do livro O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, de 1852, foi comumente usada para definir os erros da civilização, de quem insiste em trilhar caminhos sabidamente equivocados, por errôneos, e não importa o matiz ideológico. Há de soar um tanto exagerado, mas não seria absurdo o didatismo de atrelar a célebre máxima ao badalado jogo de tênis do próximo dia 28, em Dubai. A tenista número 1 do mundo, a bielorrussa Aryna Sabalenka, enfrentará o australiano Nick Kyrgios, na posição 673 e que já esteve em 22º lugar, há três anos. Mas cadê a farsa?

O duelo — badalado durante meses, como se fosse algo realmente grandioso — emula um momento seminal da história do esporte, e convém se debruçar sobre ele de modo a entender por que a ideia de agora é boba. Em 1973, o americano Bobby Riggs, de 55 anos, que havia abandonado as quadras, mas não o machismo, propôs um desafio contra Billie Jean King, então com 29 anos, fora do auge, mas ainda firme e forte. O prêmio — estipulado em 100 000 dólares — era o de menos. Jean King, pioneira na defesa das mulheres, porta-voz do movimento feminista, aceitou a brincadeira, batizada como “batalha dos sexos”. Havia mais de 30 000 pessoas no ginásio Astrodome, em Houston, e outros 90 milhões debruçados diante da televisão, em todo o mundo. “Pensei que seria um retrocesso de cinquenta anos se eu não vencesse”, disse a campeã ao fim da refrega. Ela massacrou o rival, por 3 sets a zero — e, ressalve-se, Jean King nunca tinha disputado uma melhor de cinco sets, então destinada apenas ao mundo masculino.
A vitória produziu ecos imediatos, como um manifesto político. Começou ali a luta por pagamentos de prêmios equivalentes a eles e elas. Passou a haver mais respeito. Depois da humilhação de Riggs foi criada a Associação de Tênis Feminino (WTA). “Foi graças a Billie Jean King, e aqui no Brasil a Patrícia Medrado, que fizemos uma revolução igualitária no tênis”, lembra Gisele Miró, ex-tenista campeã pan-americana. O confronto de Sabalenka e Kyrgios está longe de ter a mesma relevância, e por um óbvio motivo: as condições atuais não são as mesmas de 1973. De lá para cá houve evidentes avanços, embora a avenida não tenha chegado ao fim, longe disso. Jean King, ela mesmo, ajuda a entender o deslocamento da sacada de agora, que servirá apenas como caça-níquel: “A única semelhança é que se trata de uma partida entre um rapaz e uma moça. É só isso. Todo o resto é diferente. Nossa partida implicou uma mudança social e cultural em relação à situação em que nos encontrávamos em 1973. Este não é o caso. Espero que seja uma grande partida. Quero que a Sabalenka vença, obviamente, mas não significa a mesma coisa”, disse, e nada mais é preciso acrescentar.

Numa infeliz coincidência, que colabora para pôr lenha na fogueira de evento tão sem graça, na semana passada Sabalenka disse ser inaceitável que atletas trans enfrentem mulheres no esporte. É assunto longe de ter opinião unânime, mas ajudou a abafar a festa de Dubai — em declaração que a distancia da figura ativista de Billie Jean King e que faz da reedição da “batalha dos sexos” uma bobagem.
Publicado em VEJA de 19 de dezembro de 2025, edição nº 2975