Sobretudo desde 2019, o Brasil assistiu à consolidação de uma engrenagem de poder baseada em práticas orçamentárias secretas, campanhas digitais de desinformação e paralisia legislativa. Bem longe de constituir apenas desvios administrativos, esse conjunto de fatores compõe um sistema mais profundo e corrosivo: uma forma ampliada de condutas ruins e que se manifestam como captura institucional, distorção deliberada de informações e enfraquecimento das regras democráticas.
O chamado “orçamento secreto” é o caso mais emblemático. A partir de 2020, as emendas de relator passaram a ser usadas para direcionar bilhões de reais a municípios escolhidos por parlamentares, sem identificação dos autores, critérios de distribuição ou justificativa técnica. O mecanismo, apresentado como ajuste técnico ao projeto de lei orçamentária, transformou-se em ferramenta política com altíssimo potencial clientelista. Em 2022, mais de R$ 16 bilhões circularam por esse sistema; para 2023, previa-se quase R$ 20 bilhões. O segredo não era apenas efeito colateral, mas sim característica estruturante.
Mesmo declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em dezembro de 2022 por uma apertada margem de votos, a prática revelou algo maior que o próprio orçamento: a incapacidade (ou falta de vontade) de integrantes do Congresso de regular seus próprios mecanismos e impor padrões de transparência.
Diante desse vácuo, o STF assumiu um papel que idealmente não deveria ser seu, de fiscalizar a execução das verbas e e determinar a divulgação de informações. Isto deveria ser do interesse de integrantes do Congresso, justamente daqueles que tem o dever de prestar contas a seus eleitores.
A intervenção do STF, de um Judiciário que por determinação constitucional não pode deixar de apreciar lesões ou ameaças a direitos, mantém acesas críticas de “ativismo judicial”, alimentadas por campanhas digitais frequentemente protagonizadas pelos mesmos parlamentares interessados em manter o sistema opaco, ou seus apoiadores-apoiados/seguidores-seguidos em redes sociais.
A judicialização intensificou-se em outro campo igualmente sensível: o ambiente digital. A ausência de uma legislação atualizada sobre plataformas de redes sociais abriu espaço para um território sem regras claras, onde desinformação vira estratégia de poder.
Nesse cenário, o STF foi novamente chamado a decidir, desta vez, sobre a responsabilidade das plataformas por conteúdos publicados por usuários.
Em 2025, a Corte estabeleceu que redes sociais podem ser responsabilizadas após notificação extrajudicial e posterior decisão judicial, criando uma espécie de regime intermediário, fora situações “graves” em que conteúdo precisa ser removido pela plataforma independentemente
de notificação judicial.
Pausa para respiro e consideração sobre o que seria grave e o que não seria, ante o silêncio do Legislativo.
A decisão do Supremo, portanto, não resolve todos os problemas: conteúdos graves podem exigir retirada imediata; algoritmos não substituem decisões humanas; e plataformas terão de lidar com fronteiras nebulosas entre liberdade de expressão (que não tem a proteção no Brasil
que tem nos EUA, por exemplo) e outros direitos fundamentais, de outras pessoas que não aquelas que podem confiar demais num anonimato e proteção em redes sociais que não existe ou não deveria existir.
O ponto central permanece: o Legislativo, por inação, permitiu e continua a permitir que os problemas se agravem e se multipliquem, até serem resolvidos na via judicial, de forma possivelmente precária.
Enquanto isso, prosperou um ecossistema de desinformação que não opera apenas como ruído. Ainda que não tenha envolvimento direto de qualquer integrante do Legislativo, a alguns aproveita a confusão.
Diferentemente do erro factual, a desinformação exige intenção: manipula dados, distorce fatos, fabrica narrativas e usa deepfakes, microsegmentação e algoritmos de recomendação (enviesados, talvez?) para criar realidades paralelas.
A consequência é dupla: de um lado, encobre práticas orçamentárias duvidosas; de outro, fragiliza a confiança do cidadão nas instituições. Trata-se, portanto, de um movimento calculado, amplificado por redes sociais e como informações circulam em alta velocidade nelas e de uma rede para outra.
Um ciclo que se repete.
Voltando às emendas, em geral, e destinação de recursos públicos para feudos eleitorais inclusive de membros do Legislativo, não faltaram notícias nos últimos anos sobre as “emendas Pix”, criadas pela Emenda Constitucional 105/2019 e defendidas como simplificação administrativa. Qual terá sido o destino de, diga-se, 99% dos recursos por elas direcionados?
Em seu nobre papel de informar, a imprensa brasileira revelou sobrepreços, fraudes e até vínculos com trabalho análogo à escravidão em obras financiadas com recursos federais e relativos a emendas parlamentares. Aqui não é necessário falar de corrupção no sentido criminal, que pode até acontecer e precisa ser punida, se acontecer, mas numa combinação de opacidade, desinformação e ausência de responsabilização, que são gravíssimos.
A soma desses elementos, que inclui segredos, desinformação estratégica e inércia legislativa, forma um círculo vicioso. A falta de regras claras para a alocação de recursos públicos facilita práticas clientelistas. Essas práticas, quando expostas, geram reações políticas que tentam deslegitimar o Judiciário e criar narrativas conspiratórias. As narrativas se espalham em plataformas digitais sem regulação adequada. E a confusão resultante reduz a pressão pública por transparência, permitindo que o ciclo continue.
O problema não é exclusivo do Brasil, mas ganha aqui contornos agudos porque coincide com a hiperpolarização política e com a monetização acelerada do ambiente digital.
Talvez alguns políticos tenham descoberto há muito que conteúdo enganoso ou quase-enganoso gera engajamento, e engajamento gera capital político e, em alguns casos, financeiro. Assim, práticas que deveriam ser, no mínimo, moralmente condenadas podem ser modus operandi para alguns e episódios de punição, muitas vezes tardia, são divulgados e atacados em redes sociais, pois a culpa de tudo parecer ser sempre dos outros. Quer dizer, do Judiciário…
Não há solução simples. Mas é evidente que a democracia perde quando o Poder Legislativo deixa de cumprir suas responsabilidades constitucionais. A judicialização não é causa, mas consequência de um deixa-que-eu-deixo no Legislativo, ainda que no Legislativo haja
integrantes honrados e comprometidos com servir o eleitorado e não seus próprios interesses.
O STF, ao ser empurrado para o centro do tabuleiro, age em defesa de princípios básicos de transparência e regularidade institucional, certamente de forma imperfeita. E esse protagonismo tem custo: tensiona a separação de poderes, fragiliza consensos e expõe a própria Corte a ataques.
Restabelecer equilíbrio requer ação firme da liderança e maioria necessária de integrantes do Congresso, dando transparência sobre as emendas parlamentares, disciplinando as plataformas digitais e assumindo, sem atalhos, um papel de co-guardião da República.
Do contrário, práticas opacas continuarão a alimentar a desinformação, e a desinformação continuará a alimentar a opacidade, “free riders” (ou talvez não tão livres) vão continuar monetizando, as redes sociais continuarão lucrando e muito, pois elas não são somente a nova ágora e sim plataformas complexas que vendem espaço publicitário.
É nesse terreno movediço que a democracia, lenta e silenciosamente, se erode, ainda mais na iminência de mais um ano de eleições nacionais.
Roberto Neves Pedrosa Di Cillo é advogado, graduado pela Universidade de São Paulo, LLM pela University of Notre Dame, professor de pós-graduação, palestrante, autor de diversos artigos sobre temas de governança, Vice-Presidente das Comissões de Governança e Integridade e de Liberdade de Imprensa da OAB-SP.