“Esculhambação” foi a palavra escolhida pelo alagoano Arthur Lira para descrever a situação na Câmara sob regência do paraibano Hugo Motta, a quem ajudou a eleger como sucessor na presidência da Casa.
Motta não gostou. Retrucou com um realce nas diferenças entre eles: não se move “por conveniências individuais” nem usa o cargo de presidente “como ferramenta de revanchismo”. Evocou a imagem do “coronel Lira”, criticado pelo estilo autoritário durante a sua estadia na chefia da Câmara (2021-2025).
O conflito entre Lira e Motta mostrou um racha no comando do Centrão, grupo que em algumas votações chega a reunir quase metade (45%) dos 513 votos disponíveis na Câmara. É, também, novo capítulo numa aliança parlamentar lapidada desde o desembarque da dupla em Brasília há década e meia.
Na época, uniram-se ao então deputado carioca Eduardo Cunha, que sugeria a formação de um grupo de deputados para negociar verbas com o governo. Formaram o Blocão, como ficou conhecido, que depois virou Centrão — salvo o apelido, nada teve ou tem a ver com o bloco homônimo dos liberais no período da Constituinte (1987-1988).
A associação entre Cunha, Lira e Motta evoluiu num pacto peculiar que os ajudou a chegar à presidência da Câmara, terceiro posto na hierarquia sucessória da República, em ocasiões e circunstâncias distintas. Estabeleceram uma relação de confiança que, entre outras coisas, permitia a Cunha enviar-lhes propostas de texto prontas para assinatura pouco antes da votação. Alvos preferenciais eram os projetos do governo com reflexos diretos no fluxo de crédito dos bancos públicos para empresas privadas ou nas transferências de verbas federais a estados e municípios.
Num caso de 2012, Motta recebeu de Cunha um texto pronto para assinatura. Era emenda à Medida Provisória (nº 561) do governo Dilma Rousseff legitimando mudanças no acesso aos empréstimos do BNDES. O caso está documentado num dos inquéritos que quatro anos depois levaram à cassação, condenação e prisão de Cunha por corrupção — ele está inelegível até 2026.
“No alvo da polícia, Lira briga com Motta e racha o comando do Centrão”
O aumento exponencial das verbas e o controle na distribuição entre deputados, com alguns muito mais privilegiados que outros, sedimentaram a liderança no Centrão e garantiram a reeleição de Lira na presidência da Câmara, inclusive com votos do PT e de partidos satélites. Em 2022, quando eram gerenciadas pela assessora Mariângela Fialek, conhecida como Tuca, num endereço específico (nº 135 da ala B do Anexo II), as emendas parlamentares somavam 16 bilhões de reais. Neste ano, devem ultrapassar 50 bilhões de reais — mais do que a soma do orçamento de duas dezenas de ministérios.
O manejo dessas emendas sem os rituais obrigatórios de transparência produziu inédita “degradação institucional”, nas palavras do juiz Flávio Dino, relator do caso no STF. Há casos absurdos, como da licitação numa empresa estatal (Codevasf) durante a pandemia: o resultado da competição foi estampado no Diário Oficial dois dias antes da publicação do edital de convocação e com as regras do leilão.
Polícia e procuradoria da República, descreveu o juiz Dino, coletaram evidências de “tentativas de perpetuação do malfadado orçamento secreto”. Segundo ele, a análise dos novos dados capturados “confirma que estamos falando em uma atuação longeva na organização (da distribuição) desses recursos (do orçamento), que remonta à época da pandemia e coincide com o mandato de Arthur Lira na presidência da Câmara dos Deputados”.
Lira, talvez, tenha sido o parlamentar de maior influência nos governos Jair Bolsonaro e Lula, até fevereiro. Já está em campanha para voltar à presidência, dizem aliados, mas ficou fragilizado pela captura de uma parte dos dados sobre a estrutura e a partilha do orçamento secreto em ação policial, na semana passada, determinada pelo Supremo Tribunal Federal.
Motta tem mais um ano de mandato no comando da Câmara e, como todos os antecessores, sonha com a reeleição em 2027. Ninguém prevê ruptura definitiva na dupla que Eduardo Cunha uniu ao formar o Centrão, mas todos apostam que nada será como antes. A Era Lira parece se dissipar muito rapidamente na extensa investigação criminal sobre usos e abusos com o dinheiro dos impostos.
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Publicado em VEJA de 19 de dezembro de 2025, edição nº 2975