Em meio ao debate sobre os desafios fiscais do país, declarações recentes do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, sugeriram que decisões da Justiça Federal seriam responsáveis por uma explosão de gastos com o BPC, ao conceder o benefício de forma “expressiva” mesmo a quem não se enquadraria nos critérios legais.
“Nós temos parâmetros, no ministério, que são definidos por especialistas. Mas quando isso passa por uma máquina de judicialização e uma indústria de liminares, perde-se o controle da situação e, muitas vezes, falta dinheiro para quem precisa e tem direito”, disse Haddad.
As falas de Haddad provocaram forte descontentamento entre magistrados federais de todo o país — justamente os responsáveis por julgar todas as demandas de interesse da máquina federal. Presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil, o juiz federal Caio Marinho decidiu ir atrás dos dados do CNJ para mostrar que o cenário é, segundo ele, “exatamente o oposto” do quadro pintado por Haddad.
Segundo levantamento do Painel do INSS no “Justiça em Números”, apenas 23% dos processos relacionados ao BPC julgados pela Justiça Federal em 2024 foram considerados procedentes. A imensa maioria dos casos foi julgada improcedente (36%), extinta sem resolução de mérito (21%) ou resolvida por acordo (14%), sendo este último um indicativo de reconhecimento administrativo posterior do direito, após judicialização.
Para o juiz federal Caio Marinho, os dados desmontam a ideia de que o Judiciário atua de maneira irresponsável. “As decisões da Justiça Federal não criam direitos nem flexibilizam critérios legais. O que há é a aplicação da Constituição e das leis vigentes, com base nas provas dos autos e na dignidade humana. Falar em ‘indústria de liminares’ ignora a realidade demonstrada pelas estatísticas oficiais”, afirmou.
Além disso, os números mostram um crescimento expressivo dos acordos firmados pelo próprio INSS nos últimos anos. Em 2020, foram 9.715 acordos homologados judicialmente. Em 2024, esse número saltou para 72.079, um aumento de mais de sete vezes. Esses acordos representam situações em que o próprio INSS reconhece o direito após o ajuizamento da ação – o que levanta o questionamento sobre o motivo do benefício não ter sido concedido na via administrativa.
Outro dado relevante é que o percentual de ações julgadas procedentes tem diminuído ao longo do tempo. Em 2020, 29% dos processos resultaram em decisão favorável ao beneficiário. Em 2024, esse índice caiu para 23%. Em contrapartida, as decisões improcedentes aumentaram: passaram de 31% para 36% no mesmo período. Tais números indicam uma atuação cautelosa, técnica e fundamentada por parte dos magistrados.
O crescimento da judicialização, por outro lado, tem origem clara: o colapso da estrutura administrativa do INSS. Faltam servidores, há represamento de perícias sociais e o tempo médio de análise administrativa se mostra incompatível com a realidade de quem vive em situação de extrema vulnerabilidade. Entre 2020 e 2024, os processos relacionados ao BPC quadruplicaram – passando de 121.000 para 485.000.
“A Justiça apenas cumpre o seu papel constitucional diante da ineficiência estatal. O cidadão não procura o Judiciário por opção, mas por necessidade. Quando os canais administrativos falham, é no Poder Judiciário que ele encontra acolhimento e respeito à sua dignidade”, reforça Marinho.
Outro ponto que vem sendo levantado é o fato de que discussões complexas como a reestruturação da política de benefícios assistenciais estejam sendo simplificadas no debate público, com deslocamento da responsabilidade para o Poder Judiciário. A Ajufe aponta que, embora compreensível que o contexto fiscal exija medidas duras, não é razoável transferir para a Justiça Federal a culpa por decisões que são, em essência, políticas e administrativas.
“O esforço recente de grupos de trabalho envolvendo o Executivo e o Judiciário, coordenado pelo CNJ, tem buscado harmonizar entendimentos, promover capacitações e evitar decisões contraditórias. Essa cooperação institucional, baseada em dados e boa-fé, é o caminho adequado para enfrentar os desafios da judicialização – não a criação de narrativas que desinformam e enfraquecem o pacto federativo”, finaliza Marinho.