O funcionamento de um espelho é relativamente simples. Em vez de absorver ou espalhar os raios luminosos que incidemsobre sua superfície plana, o espelho os reflete, criando umaimagem que parece estar atrás dele. Essa imagem é chamada de imagem virtual, pois não pode ser projetada em uma tela e só pode ser vista por quem olha diretamente para o espelho.
A imagem formada é idêntica àquilo que está à sua frente, emtamanho e forma, mas é virtual, e não real. A literatura – e, por extensão, todas as artes –, ao reclamar para si uma condição de representação, acaba por oferecer a quem lê uma espécie de espelho. Cavamos, então, sentidos a serem atribuídos ao nosso mundo, à nossa existência. Em 1977, quase numa operação de resposta à crítica, por sua faltade afinidade com o regionalismo que antecedeu sua geração literária, Clarice Lispector escreve, finalmente, uma personagem nordestina estereotipada.
Mas a seu modo. Clarice instaura um espelho na cena em que sua personagem emblemática de A hora da estrela tenta se reconhecer. Macabéa, uma nordestina em deslocamento urbano, olha-se no objeto “ordinário” da pensão em que vive e não se percebe, no corpo e na cabeça. Macabéa desconhece a própria identidade, despida das camadas depositadas pelos outros sobre ela: “Nunca se viu nua porque tinha vergonha” e, por isso mesmo, “não sabia que ela era o que era”.
E quem é que sabe? Essa torção na ideia de definição donordestino, em deslocamento ou não, acaba promovendo umacúmulo de pensamentos que ampliam um gesto preconceituosoem relação ao Nordeste e ao seu povo – gesto que não é de hoje,mas que não se dissipou ao longo do tempo. Interessa-nos aquiromper essa concepção de identidade estabelecida, a princípiode fora para dentro, não sem nos debruçarmos sobre essa sintaxe que se acomodou no discurso internalizado pelo próprionordestino, numa espécie de Complexo de Macabéa.
A anti-heroína de Clarice vive uma existência de submissão e falta de autoconsciência. Macabéa se curva diante da sociedade, aceitando passivamente o papel que lhe é atribuído, imersa em uma estrutura social tão enraizada que “não fazia perguntas”. Sua invisibilidade é outra característica marcante, já que “a nordestina se perdia na multidão” e sua história comum de retirante é relegada a segundo plano, em uma série de preterições, nos campos pessoal e profissional, para o “sul do país”. Clarice tinha outros propósitos para Macabéa, mas a personagem acabou personificando um sentimento de inadequação que por anos subjugou os nordestinos. E que afeta a imagem que se vê no reflexo.
Apesar de ter nascido na Ucrânia, por ter migrado ainda criança para o Brasil e se estabelecido no Recife, Clarice se declaravapernambucana. Mesmo assim, ela nunca foi identificada como “escritora nordestina” – e seguiu renunciando ao posto de porta-voz daquilo que se esperava dela até seu último texto. O cearense José de Alencar, embora reconhecido como um “intelectual da Corte” – e talvez por isso mesmo –, parece menos nordestino que o também pernambucano Ariano Suassuna. É a mesma régua que torna Luiz Gonzaga mais nordestino que Chacrinha, apesar de os dois terem nascido no interior de Pernambuco.
Para além dessas medições, artistas nordestinos não estãopresos ao que se espera deles. A ocultação da produção social,cultural e científica nordestina se manifesta com nitidez quandoas ofensas insistentes se estruturam em argumentos intelectuais,que negam qualquer contribuição dada pelo povo do Nordesteao saber nacional. Na busca pelo contraponto, as vítimas maisreativas acessam a rota segura do lembrete ao que foi “esquecido” pela ignorância alheia: a música de Gilberto Gil e Caetano Veloso, os escritos de Jorge Amado, de Rachel de Queiroz e do próprio Ariano, a abordagem educacional inovadora de Paulo Freire, os feitos científicos, as constantes notas máximas na redação do Exame Nacional do Ensino Médio e outros mais.
Mas essa resposta enérgica nem sempre foi percebida. Ocomportamento característico da personagem de Clarice dialogacom o abaixamento de cabeça que acompanhou parte do povodo Nordeste por muitos anos, suprimindo sua possibilidade de réplica contra a ofensiva moral oxigenada pelo recalque e pela perversão. O Complexo de Macabéa, portanto, foi um dos responsáveis por silenciar vozes e pela busca tardia sobre aformação dessa construção distorcida que teima em insistir. Suaincidência está para o Nordeste como o complexo de vira-lata está para o Brasil.
O cachorro sem pedigree inspirou o escritor Nelson Rodrigues, quando cunhou a expressão que descreve a falta de autoestima de brasileiros em relação a outros países, especialmente os mais desenvolvidos: um sentimento de inferioridade e autoaversão, que denota uma mentalidade de submissão e autodepreciação, atribuída à influência histórica de uma visão colonizada sobre a identidade nacional. E tal qual a conclusão de Nelson, que nasceu no Recife, longe de corresponder a uma densa pesquisa sociológica, o conjunto de emoções extraído da obra de Clarice é resultado empírico da observação.
A dificuldade imposta pelo Complexo de Macabéa para oenfrentamento de práticas discriminatórias merece atenção nãosomente por comprometer a consciência individual, mas sobretudo pelo quanto afeta o coletivo. Dificuldade arejada pela invalidação cultural sofrida pelo povo nordestino, na forma de epistemicídio, com a negação de conhecimentos e de quem os produz. Segundo a filósofa Djamila Ribeiro, pode-se resumir esse subproduto do colonialismo como o apagamento sistêmico de produções e saberes produzidos por grupos oprimidos. A repetição do que é o nordestino pelo discurso do Sul não é voltada para o excesso de reafirmações, muito menos por insuficiência de definições: ela atende, como veremos adiante, desde o entendimento do Nordeste enquanto Nordeste, a uma série de interesses subterrâneos.
Seca, miséria, cangaço, forró, baião e outros elementos tidos como tradicionais são o que se espera, historicamente e hoje em dia, de quem produz a partir do Nordeste. Explorar essas temáticas leva a questionar se essas escolhas foram feitas deforma arbitrária ou intencional. Trata-se de uma narrativa que,pela repetição, tornou-se uma verdade imposta, obscurecendooutras perspectivas e impedindo a percepção de contraposições.
Essa negação do povo do Nordeste como sujeito de conhecimento ou a imposição de que seus homens e mulheres só podem acessar a mesma pasta de temas, o que limita a presença nordestina na formulação do saber, é epistêmica, contribui para a edificação de muros sociais e ainda interfere na sua identidade.
A nordestinidade – termo que não é novo, mas que está cada vez mais popular – não como inspiração, mas como único caminho possível, dá uma partitura para entoarmos essa música. Isso é o que faz, até o presente, artistas sudestinos serem tratados como “nacionais”, enquanto artistas nordestinos, ou quaisquer outros que não produzam a partir do tão celebrado “eixo Rio-São Paulo”, serem etiquetados como “regionais”. Uma distinção que privilegia o lugar de origem em detrimento do mérito do que é entregue.
Contagiada pela decolonialidade – outro termo, felizmente,também em voga –, a produção cultural e acadêmica tem seespalhado ao redor do mundo com um caráter rompedor. Nocontexto do regionalismo nordestino, essa abordagem visa a superar as estruturas cristalizadas por sentimentos de inferioridade, formados ao longo de décadas de destrato moral e depreciação.
Este livro não deixa de ser uma resposta a uma angústia que acomete qualquer nordestino que queira saber como se dá ofuncionamento do próprio espelho. A inferiorização sistêmica imposta ao longo dos anos gerou apatia e inércia em muitos, refletida na forma como uma parte do Nordeste se enxerga diante desse espelho. Macabéa, uma mulher nordestina, migrante e maltratada pela vida, lida com questões existenciais porque acha que não é “muito gente” e pede desculpas por tudo, inclusive “por ocupar espaço” e existir.
Ela representa, na prosa poética de Clarice, a completa ausênciade si mesma e da capacidade de reação. Os sucessivos apontamentos ofensivos têm suficiência para levar à internalização de falsas percepções. Como bem explica o jurista Adilson Moreira, grupos podem internalizar estereótipos,passando a perceber a si mesmos e aos pares a partir de generalizações. Do mesmo modo, representações negativas constantes são fontes de tensões emocionais e sentimentos de conformidade e de inadequação, justamente o que forma o quadro psicológico da anti-heroína de Clarice: “A menina não perguntava por que era sempre castigada mas nem tudo se precisa saber e não saber fazia parte importante de sua vida. […] Pois que vida é assim: aperta-se o botão e a vida acende. Só que ela não sabia qual era o botão de acender”. Que botão é esse, com condições de acender a vida, poderia se perguntar a Macabéa, enfim reagindo. Se ela soubesse como.
O Complexo de Macabéa, então, é sustentado pelo silenciamento imposto pelos contínuos discursos de inferiorização e pelo epistemicídio. Esses mecanismos não apenas perpetuam julgamentos negativos, mas também inibem a capacidade de expressão e a produção de conhecimentos que poderiam desafiar e desconstruir essas narrativas prejudiciais. Esse ciclo alimenta uma autoimagem negativa e reduz a autoestima, levando quem padece com o preconceito a se ver pela lente dos estereótipos, gerando ainda mais repressão e emudecimento.
“Ela [Macabéa] falava, sim, mas era extremamente muda”. Além de sufocar, esse conjunto de sentimentos, pensamentos e atitudes também provoca impactos emocionais capazes de retardar que se ouça o “grito puro sem pedir esmola” tão necessário.
* Octávio Santiago é jornalista e pesquisador de estudos culturais, autor de Só sei que foi assim, que acaba de ser lançado pela Editora Autêntica