O governo do presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, sabotou conselhos e agências que fiscalizavam estatais do país, de forma a permitir o alastramento dos casos de corrupção, mostrou uma investigação do jornal americano The New York Times nesta sexta-feira, 5. A denúncia apontou que, nos últimos quatro anos, a administração Zelensky impediu o funcionamento de conselhos de supervisão — uma demanda dos Estados Unidos e da Europa para acompanhar para onde a ajuda financeira estava indo em tempos de guerra, sinal de desconfiança do funcionamento das empresas ucranianas –, deixou vagas em aberto e nomeou aliados para cargos-chave.
Com base em documentos e entrevistas com cerca de 20 autoridades ocidentais e ucranianas, algumas delas em condição de anonimato devido à sensibilidade do assunto, o NYT constatou interferência política na Energoatom, estatal responsável pela energia nuclear do país que enfrenta um grave escândalo de corrupção; na Ukrenergo, estatal de eletricidade; e na Agência de Aquisições de Defesa da Ucrânia, que tinha como papel fiscalizar contratos de armas durante o conflito. Segundo o veículo, os aliados europeus tinham conhecimento dos desvios, mas nada fizeram por receio de que uma decisão dura transparecesse como uma falta de apoio a Kiev em meio à guerra.
“Nós nos importamos com a boa governança, mas temos que aceitar esse risco”, disse Christian Syse, enviado especial da Noruega para a Ucrânia, um dos principais doadores de Kiev, ao The New York Times, acrescentando: “Porque é uma guerra. Porque é do nosso interesse ajudar a Ucrânia financeiramente. Porque a Ucrânia está defendendo a Europa dos ataques russos.”
Escândalo na Energoatom
A investigação do The Times indicou que “a interferência política no conselho de supervisão da Energoatom é um estudo de caso de como os líderes da Ucrânia têm bloqueado os esforços para prevenir a corrupção”. O governo Zelensky não só teria atrasado a formação do conselho de supervisão da estatal como teria deixado uma vaga em aberto, paralisando o mecanismo. O jornal alegou que, caso tivesse funcionado em sua capacidade plena, o conselho poderia ter evitado uma “corrupção desenfreada”, com subornos de até 15% pagos por empreiteiros.
O gabinete anticorrupção da Ucrânia, que atua de forma independente do governo, classificou o caso como uma das maiores investigações do setor energético desde o início da guerra. Em comunicado divulgado em novembro, a agência disse que uma “organização criminosa de alto nível” teria desviado cerca de US$ 100 milhões por meio de contratos fraudulentos da Energoatom.
O governo Zelensky também teria tentado interferir na Ukrenergo, afirmou Volodymyr Kudrytskyi, ex-diretor executivo da empresa, ao The New York Times. Poucos meses da guerra, ele teria começado a receber ligações de Herman Halushchenko, que havia sido recentemente nomeado ministro da Energia. Kudrytskyi teria sido, então, pressionado a contratar pessoas com pouca experiência para cargos de gestão — uma ideia rejeitada por ele, que disse ter sido apoiado pelo conselho da Ukrenergo. Segundo o NYT, as estatais ucranianas são alvos frequentes de políticos corruptos.
O conselho era composto por sete pessoas — quatro estrangeiros selecionados a partir de uma lista restrita da União Europeia (UE) e de bancos ocidentais, além de três representantes do governo ucraniano — que supervisionam os principais projetos e as nomeações executivas. No final de 2021, o mandato do conselho da Ukrenergo estava prestes a terminar. O ministério de Energia, então, rejeitou a lista da UE e demandou que uma das vagas fosse preenchida por Roman Pionkowski, um especialista polonês em energia que havia trabalhado em projetos de consultoria na Ucrânia, relataram dois funcionários ao jornal americano.
Pionkowski, que não havia passado na entrevista por sua baixa qualificação, acabou sendo nomeado de qualquer maneira. Em dezembro de 2021, a nova formação tomou posse. Dois meses mais tarde, começaria a invasão russa, que tem como estratégica atacar alvos energéticos na Ucrânia. Sob a liderança de Kudrytskyi, a Ukrenergo realizaram reparos a todo momento, de forma a permitir o funcionamento do serviços. Devido à alta confiabilidade, doadores ocidentais investiram US$ 1,7 bilhão em empréstimos no primeiro ano de guerra.
Outras sabotagens
Foi então que Kudrytskyi passou a ser acusado por autoridades de não fazer o suficiente para conter a ofensiva russa. Ele discutiu diretamente com Halushchenko, que pedia sua demissão. O conselho, por sua vez, estava defasado: um membro estrangeiro havia renunciado por motivos pessoais e o governo nunca preencheu a vaga. Ou seja, três estrangeiros (incluindo o polonês indicado pelo governo) e três ucranianos. No final, Kudrytskyi demitido e dois membros renunciaram em protesto pela decisão “politicamente motivada”.
Em paralelo, o ministro investia massivamente na Energoatom. O plano era comprar dois reatores nucleares antigos de projeto russo da Bulgária para, então, transferi-los para uma usina nuclear no oeste da Ucrânia, reativá-los e conectá-los à rede elétrica. O projeto, apoiado por parceiros ocidentais e criticado por organizações anticorrupção, obteve financiamento de 600 milhões de dólares. A iniciativa, alertaram os críticos, seria um desperdício de dinheiro público em uma das empresas estatais mais corruptas do país.
Enquanto isso, o conselho da Energoatom estava paralisado por contratos atrasados por autoridades ucranianas. Em 12 de dezembro de 2024, embaixadores dos principais aliados da Ucrânia pressionaram o governo a formá-lo, o que só aconteceria em janeiro. Mas uma vaga estrangeira permaneceu em aberto, empatando o placar: dois especialistas estrangeiros e dois representantes ucranianos. No momento, o acordo do reator encontra-se suspenso e não faz parte da investigação de corrupção contra a estatal.
A história se repetiria numa agência independente para fiscalizar as compras de armamentos. O conselho, assim como nos outros casos, teria sido sabotado pelo governo — dessa vez, pelo Ministério da Defesa, que tentou centralizar o poder para contratar e demitir o chefe da agência. Em uma jogada, a administração Zelensky demitiu os seus dois representantes após um membro estrangeiro pedir demissão. O conselho ficou sem quórum, e os poderes foram transferidos para o Ministério da Defesa.
Atenta aos sinais de problemas, a Comissão Europeia encomendou um relatório sobre os riscos de corrupção na indústria energética da Ucrânia. Uma cópia do documento, obtida pelo The New York Times, alertou para a “persistente interferência política” e, nas palavras do jornal, “destacou a fragilização dos conselhos de supervisão por parte de Kiev como um problema crítico”.