No conto de fadas Branca de Neve, a rainha pergunta ao espelho mágico se ela é a mais bela de todas e a sinceridade da resposta é o novelo do emaranhado de desventuras da jovem enteada. O espelho do conto é o símbolo das falhas que não podemos esconder, o superego cruel que diz a verdade sem rodeios. Em seu novo livro Brasil no Espelho, o cientista político Felipe Nunes usa a metáfora do espelho para revelar quem o brasileiro acha que é. O resultado é um personagem tão multifacetado e contraditório que é como se Nunes houvesse destruído o espelho a marretadas para ressaltar os vários brasileiros em cada caco de vidro.
Há vários ângulos para ler Brasil no Espelho, e dois chamam a atenção por contrariarem o arquétipo de um povo alegre, confiante e com jeitinho. Este Zé Carioca da propaganda existe, mas a pesquisa coordenada por Nunes mostra que, no fim do dia, o brasileiro é um sujeito cansado e medroso.
O livro é resultado de 9.994 entrevistas realizadas entre novembro e dezembro de 2023, ainda sob o impacto do fim da pandemia de covid, pela empresa de pesquisas Quaest, sob encomenda da TV Globo. Na pesquisa, foi feita uma pergunta espontânea sobre como as pessoas se sentiam e 51% relataram espontaneamente a sensação de cansaço, exaustão, tristeza, ansiedade e medo.
Esse desalento está diretamente ligado à falta de dinheiro. Entre as faixas de renda entre um e cinco salários mínimos, a maioria diz se sentir cansado. Os cansados só se tornam minoria a partir dos 5 salários mínimos. Esta não é uma exaustão teórica, é de excesso de trabalho: 84% dos brasileiros precisam de mais de um trabalho para complementar a renda.
Jogando no lixo o discurso coach, Nunes afirma que, no geral, o brasileiro que depois do expediente vira motorista do Uber ou vende quentinhas não faz isso pelo sonho de empreender, mas por pura necessidade de pagar as contas no fim do mês. “Esses números apontam para um ‘empreendedorismo de exaustão’: menos CLT e mais CNPJ não apenas por vocação, mas como resposta defensiva ao aperto de renda e à multiplicação de bicos. O desejo de “não ter patrão” (83%) mistura busca de autonomia com a percepção de que a regra do jogo empurra o risco para o indivíduo: o MEI barateia a porta de entrada, as plataformas reduzem barreiras de acesso e o crédito digital dá fôlego — mas tudo isso opera com renda volátil, jornada esticada e proteção social limitada. Na prática, parcela relevante do que se chama de “empreender” é pejotização do trabalho, que preserva a aparência de liberdade enquanto amplia a responsabilidade individual por receitas, custos e seguros contra o azar. O resultado é um ciclo em que o cansaço não é acidente, é engrenagem: trabalha-se mais para estabilizar a renda e, ao estabilizá-la, assume-se ainda mais risco”, escreve Nunes.
Esta descoberta explica a popularidade da plataforma do presidente Lula da Silva para acabar com a jornada 6×1 e como será improvável o Congresso recusar o projeto quando ele for a votação.
O segundo ponto do livro toca o eixo da plataforma da oposição, a segurança pública. Há toneladas de pesquisas mostrando como a sensação de insegurança se tornou parte do cotidiano. O medo que antes parecia estar restrito às grandes metrópoles, agora contamina a todos, não importa sua renda, o estado onde mora, a religião que professa, raça ou nível de educação.
A novidade dos dados da Quaest é indicar que esse medo tem gênero. Enquanto para os homens, a maior preocupação em 2023 era a corrupção (22%), as mulheres já diziam que era a violência (26%). A pesquisa mostrou uma correlação direta de renda, quanto menos a pessoa ganha, mais a segurança é um problema.
Ao longo da pesquisa, a Quaest formou 18 grupos divididos por gênero, raça e renda para medir essa sensação de insegurança. Os oito primeiros na escala de sentimento de insegurança são formados por mulheres: 78% das mulheres pretas com renda familiar entre dois e cinco salários mínimos dizem se sentir inseguras caminhando pelas ruas da cidade onde vivem. Formam, de longe, o grupo que se sente mais inseguro. Em seguida, vêm as mulheres pardas, com 67%.
O medo, diz Felipe Nunes, gerou um consenso punitivista na sociedade. Pautas como a prisão a maioridade penal a partir dos 16 anos, pena de morte para estupradores são defendidas pela larga maioria _ indicando o acerto da direita em concentrar seus esforços na aprovação pelo Congresso de leis duras contra criminosos. Ao mesmo tempo, a tese bolsonarista do armamentismo, é amplamente rechaçada. Em pesquisas posteriores, a Quaest mostrou que 86% concordam com a frase “a polícia prende, a Justiça solta” e que a Polícia Militar é a segunda instituição mais confiável, apenas atrás da Igreja Católica.
Escreve Nunes: “o Brasil vive aprisionado num círculo vicioso em que o medo gera a desconfiança, a desconfiança alimenta o punitivismo e o punitivismo promete uma ordem que raramente se cumpre. Esse círculo reorganiza a vida cotidiana _ do endereço escolhido às rotas e horários _ penaliza de modo desproporcional as mulheres. Armas não aparecem como saída: o que a população pede é Estado que funciona, polícia profissional e Justiça que puna com certeza”.
O espelho em pedaços apresentado por Felipe Nunes não é fácil de colar. Há convergências surpreendentes entre eleitores que se dizem de direita e esquerda, como na concordância sobre fé e família, mas o quadro geral é de desamparado. O brasileiro de Felipe Nunes não é cordial, nem forte. Está cansado, medroso e desconfiado. É, acima de tudo, um sobrevivente.