Antes de ser preso por tramar um golpe de Estado, Jair Bolsonaro combinou com a cúpula de seu partido, o PL, que teria a palavra final sobre as candidaturas para o Senado em 2026. A prioridade do ex-presidente é conquistar maioria expressiva na Casa para atingir pelo menos dois objetivos. Um é a aprovação de uma anistia aos condenados pelos ataques do 8 de Janeiro e pelo atentado contra a democracia, o que não parece possível com o elenco atual de senadores. O outro é garantir quórum suficiente para a votação do impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), com destaque para Alexandre de Moraes, relator do processo que resultou na condenação de Bolsonaro a 27 anos e três meses de prisão. Numa demonstração de que seu plano é para valer, o capitão cogitou inicialmente que sua mulher, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, e seus três filhos mais velhos, Flávio, Carlos e Eduardo, concorressem ao Senado, o que só não deve ocorrer no caso do rebento exilado nos Estados Unidos. Mais do que nunca, conquistar a supremacia no Salão Azul do Congresso é peça-chave na tentativa de redenção do bolsonarismo.

Essa estratégia não é nova e foi ignorada durante um bom tempo pelo Supremo, transformado em alvo preferencial do capitão quando ele governava o país. Na última quarta-feira, 3, no entanto, a situação mudou radicalmente graças a uma canetada monocrática do decano da Corte, ministro Gilmar Mendes. Tomada como reação preventiva aos movimentos políticos do ex-presidente, essa decisão provocou a repulsa dos parlamentares, reacendeu o embate entre Legislativo e Judiciário e, como consequência, pode atrapalhar a tramitação de projetos de interesse do país. Em um despacho com longas considerações sobre riscos à democracia no mundo e a escolha do Judiciário como alvo vilipendiado por governos extremistas de direita, Mendes declarou inconstitucionais diversos trechos da Lei de Impeachment, de 1950, e fixou a tese de que apenas o procurador-geral da República pode apresentar eventuais processos de destituição de juízes da Suprema Corte.
O Senado, que atualmente é responsável por dar ou não seguimento aos procedimentos, teria suas atribuições esvaziadas, e a ele caberia apenas decidir, na hipótese de o chefe do Ministério Público investir contra a cúpula do Judiciário, abrir ou não a ação contra o magistrado. Como os procuradores-gerais são historicamente alinhados ao Supremo, pelos padrões delineados por Mendes, as chances de um processo de impeachment ser levado adiante beiram a zero. A iniciativa foi definida por oposicionistas como uma tentativa de blindagem contra eventual desforra de uma possível maioria bolsonarista no Senado na próxima legislatura. Ela também reacendeu a queixa dos congressistas sobre o fato de ministros do STF derrubarem ou modificarem individualmente leis aprovadas pelo Parlamento e sancionadas pelo presidente da República, o que representaria usurpação de prerrogativas e, de quebra, incentivaria o ambiente de vale-tudo institucional que há anos impera na Praça dos Três Poderes.

Atualmente, tramitam entre os senadores mais de sessenta pedidos de impeachment contra alvos do STF, trinta só neste ano. Mesmo sem andarem, eles atuam como uma eterna espada sobre a cabeça dos magistrados. Fazia tempo que Mendes defendia que o tribunal analisasse a validade das normas de afastamento de ministros do Supremo por suposto conflito com a Constituição, mas diferentes movimentos políticos da Corte evidenciaram que os magistrados não queriam levar adiante apenas uma discussão teórica sobre uma legislação antiga. A ambição era muito maior. Na terça 2, por exemplo, o ministro pediu que o julgamento sobre o tema fosse realizado a partir da próxima semana e de forma virtual, expediente normalmente usado para assuntos pouco polêmicos ou de consenso. No dia seguinte, suspendeu, por liminar, dispositivo que permite a cidadãos comuns ingressarem com pedido de impeachment de magistrados, derrubou a possibilidade de afastamento temporário de juiz que eventualmente responda a processo de impeachment, criticou a “intimidação do Poder Judiciário por meio do impeachment abusivo”, dificultou o quórum de deliberação para a destituição de magistrados e definiu que o teor de decisões judiciais não pode ser utilizado como fundamento para a acusação de crime de responsabilidade.
Em 2021, não custa lembrar, o próprio Bolsonaro protocolou pedido de impeachment de Moraes. Caso o plano do ex-presidente de conquistar maioria no Senado tenha sucesso, é provável que tanto Moraes como Mendes sejam alvo de iniciativa parecida na próxima legislatura. “Ao atacar a figura de um juiz da mais alta Corte do país, a ponto de se buscar sua destituição, não se está apenas questionando a imparcialidade ou a conduta do magistrado, mas também minando a confiança pública nas próprias instituições que garantem a separação de poderes e a limitação do poder”, escreveu o decano. No ano passado, durante um fórum jurídico no exterior, integrantes do tribunal chegaram a discutir com um grupo de empresários a importância de implantar o regime semipresidencialista no Brasil para tolher eventuais empoderamentos indevidos do Congresso.

Quem ouviu a peroração a resumiu como um temor de que o colchão de proteção que os juízes do STF hoje acreditam ter no Senado se desfizesse com a eleição em massa de bolsonaristas. A um graduado interlocutor do Congresso, o recado foi mais claro: a pressão de senadores eleitos na próxima eleição, somada ao cenário político potencialmente conflagrado, poderia levar a Casa a entregar pela primeira vez na história a cabeça de um magistrado na bandeja. Consta que pelo menos sete integrantes do STF receberam alerta semelhante.
A decisão de Gilmar Mendes desencadeou uma enxurrada de críticas da classe política, a começar pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), que nas últimas semanas protagonizou embates com o governo ao trabalhar abertamente para derrubar a indicação do advogado-geral da União (AGU), Jorge Messias, para a vaga aberta no STF com a aposentadoria de Luís Roberto Barroso no Supremo (veja o quadro).

Em discurso proferido no plenário, Alcolumbre disse que o veredicto “usurpa as prerrogativas do Poder Legislativo” e representa “grave ofensa à separação dos poderes”, e dobrou a aposta ao acenar com a aprovação de uma emenda à Constituição que deixe evidentes os direitos do Congresso no andamento de pedidos de impeachment que alvejam o tribunal. Na sequência, o senador também ameaçou colocar em votação projeto que limita a possibilidade de juízes da Suprema Corte darem decisões individuais. Numa tentativa de reduzir as resistências de Alcolumbre a seu nome, Messias enxergou na cizânia uma oportunidade e pediu ao Supremo, por meio da AGU, que reformasse a decisão de Mendes, negada no dia seguinte.
Partidário da escolha de Rodrigo Pacheco (PSD-MG) para a Corte, Alcolumbre lembrou que o senador mineiro — que contava com o apoio de Mendes e Moraes e acabou preterido por Lula para o Supremo — é autor de um projeto que atualiza as regras de impeachment e não blinda integrantes do Judiciário. Ao contrário, prevê a destituição do cargo inclusive por “manifestar opinião sobre processos ou procedimentos pendentes de julgamento”. Na Câmara, a oposição classificou o despacho como algo sem precedentes, a verdadeira “PEC da blindagem”. A batalha entre Legislativo e Judiciário recrudesceu com força. Ela nunca foi interrompida nos bastidores, especialmente em razão das investigações sobre desvios de emendas parlamentares, mas andava em banho-maria diante do entendimento de que cada poder tem arsenal de sobra para retaliar o outro.

Um conflito aberto pode trazer prejuízos sérios ao país. Enquanto energia é gasta com esse cabo de guerra sobre prerrogativas e ameaças de retaliações, projetos de interesse da sociedade ficam em segundo plano. A PEC da Segurança Pública até agora não avançou na Câmara. O projeto de lei apresentado pelo governo contra as facções criminosas aguarda a análise dos senadores. Os dois textos são destinados a combater a criminalidade, que lidera o ranking de preocupação dos eleitores, segundo as pesquisas. Ao contrário de políticos e magistrados, a população não quer saber de “PEC da blindagem”, seja para o Legislativo, seja para o Judiciário. O Brasil tem desafios e prioridades bem mais urgentes. Autocontenção, diálogo e prudência fariam bem a meritíssimos e excelências.
Publicado em VEJA de 5 de dezembro de 2025, edição nº 2973