Entre 2021 e 2023, mais de 15 mil crianças e adolescentes foram mortos de forma violenta no Brasil. Um número assustador que, no entanto, é apenas a ponta de um enorme iceberg, cuja dimensão ainda não conseguimos sequer calcular. Diariamente, meninos e meninas sofrem ameaças de morte por testemunhar ou mesmo ser vítimas de exploração e de outras violências no país.
Criado em 2003, o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM) já protegeu 15.770 pessoas, 5.981 crianças e adolescentes e 9.789 familiares em pouco mais de duas décadas de existência.
Única política pública no Brasil que garante proteção para quem vive sob ameaça de morte, o programa ainda é, no entanto, “institucionalmente frágil”, sustentado apenas por decretos e convênios, sem o respaldo de uma lei federal, critica Lucas José Ramos Lopes, secretário executivo da Coalizão Brasileira pelo Fim da Violência contra Crianças e Adolescentes, em entrevista à coluna.
Recentemente, li Dona Vitória Joana da Paz (Editora Planeta, 2024), cuja primeira edição, de 2006, intitulado Dona Vitória da Paz, inspirou o filme Vitória, com Fernanda Montenegro, ainda em cartaz. Com uma narrativa envolvente, o livro do jornalista Fábio Gusmão mostra em detalhes o alcance e a importância do fortalecimento desse tipo de política.
Trata-se de uma história real, revelada pela primeira vez, em 2005, numa série de matérias do próprio Fábio. Aos 80 anos, Dona Vitória, como ficou conhecida, denunciou o tráfico de drogas em Copacabana (RJ), registrando de seu apartamento vídeos das ações criminosas, o que levou à prisão de mais de 30 pessoas, entre traficantes e policiais corruptos. Por segurança, viveu em anonimato por cerca de 17 anos no Programa de Proteção a Testemunhas até sua identidade verdadeira ser revelada após sua morte, aos 97 anos, em 2023. Sem essa proteção, a história nunca viria à tona.
Os públicos são diferentes, mas, na prática, a importância do PPCAAM para salvar vidas – e mesmo viabilizar denúncias na Justiça – é a mesma. “Há crianças e adolescentes vítimas de estupro ou de exploração que recebem ameaças contra a sua vida ou a de seus familiares, assim como os que sofrem ameaças porque acabam ouvindo demais ou mesmo presenciando ou denunciando um crime”, diz Lucas Lopes.
Segundo o especialista, o Programa é para todas as crianças e adolescentes que precisarem de proteção, independentemente da classe social ou da renda. “Não é um programa só para proteger a vida de crianças e adolescentes em contextos periféricos ou de renda baixa”, ressalta. Em geral, no entanto, os protegidos são meninos pretos, moradores de comunidades vulneráveis, privados de direitos básicos e, por vezes, vítimas de outros tipos de violência e racismo.
DESAFIOS À PROTEÇÃO
Apesar de o Brasil ter aprovado em 2017 a Lei nº 13.431,a chamada Lei da Escuta Protegida, que estabelece o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente Vítima ou Testemunha de Violência, as que testemunham violência ainda não existem para o Sistema, avalia Lopes. “Não há sequer no Boletim de Ocorrência um campo para perguntar se teve alguma criança ou adolescente que presenciou uma agressão ou crime, por exemplo”, critica. “Ninguém está se dando conta de que elas também vão sofrer os impactos no seu desenvolvimento e nas questões de saúde mental”.
Além de alertar para falhas como essa na operacionalização do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente Vítima ou Testemunha de Violência, em outubro deste ano, a Coalizão publicou um relatório para subsidiar a construção de um marco legal permanente que assegure continuidade, estabilidade orçamentária e expansão do PPCAAM. Segundo o documento, hoje o programa “opera em constante vulnerabilidade a mudanças político-administrativas”.
Avaliação conduzida pela Plan Eval, uma instituição especializada em avaliação e monitoramento de programas sociais, revelou desafios críticos: 55% dos gestores apontam recursos financeiros insuficientes, 78% das entidades indicam que a rede de atendimento não cumpre adequadamente as suas funções e 43% dos profissionais reportam sobrecarga excessiva.
PROGRAMA AINDA É DESCONHECIDO
Em âmbito nacional, o PPCAAM estrutura-se a partir de uma Coordenação Geral, vinculada à Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, que articula a execução de proteção nos estados.
O ingresso de crianças ou adolescentes ameaçados ocorre por meio das chamadas portas de entrada: Conselho Tutelar, Ministério Público, Defensoria Pública e Poder Judiciário, que, muitas vezes, segundo o especialista, desconhecem o funcionamento do Programa ou mesmo a sua existência.
Infelizmente, o PPCAAM ainda não consegue alcançar todas as crianças e todos os adolescentes que demandam proteção. Hoje, está em 23 das 27 unidades da federação.
Dados de monitoramento entre 2011 e 2020 demonstram que o Programa tem sido eficaz no cumprimento dos seus objetivos de preservar a vida de seus protegidos, com um incidência de óbito durante a proteção inferior a 0,1%.
Além da preservação física, o Programa também impacta a vida desses meninos e meninas. “Dá, muitas vezes, uma nova chance para essas crianças e adolescentes, permitindo que eles acessem direitos que, muitas vezes, não tinham mesmo antes de serem ameaçados”, avalia o secretário executivo da Coalizão Brasileira pelo Fim da Violência contra Crianças e Adolescentes.
Já a contribuição do Programa para a redução da letalidade é estimada em 6,8%, correspondente à proporção entre protegidos e o total de vítimas. Entre 2016 e 2020, o PPCAAM protegeu 2.560 pessoas, representando uma relação de uma vida salva para cada 13 vidas perdidas.
FALTA UMA POLÍTICA NACIONAL
“Infelizmente, no Brasil, estamos sempre chegando depois que a violação aconteceu”, critica Lopes. Segundo ele, falta ainda uma política nacional de prevenção e de enfrentamento à letalidade de crianças e adolescentes. O que existe é um “monte de planos”.
Para o especialista, é importante que essa política seja criada e que o PPCAAM esteja ancorado nela. Com isso, estaríamos reduzindo também, segundo ele, o número de crianças e adolescentes que demandariam proteção. Num cenário ideal, o Estado precisa chegar antes que a violência ocorra. Diminuir a alta letalidade de crianças e adolescentes deve ser uma agenda prioritária para o presente e o futuro do país.
* Jornalista e diretora da Cross Content Comunicação. Há mais de três décadas escreve sobre temas como educação, direitos da infância e da adolescência, direitos da mulher e terceiro setor. Com mais de uma dezena de prêmios nacionais e internacionais, já publicou diversos livros sobre educação, trabalho infantil, violência contra a mulher e direitos humanos. Siga a colunista no Instagram.