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Festas de luxo e vendas casadas: o esquema que faz médicos lucrarem com drogas manipuladas para emagrecer

Nesta quinta-feira, 27, a Polícia Federal deflagrou uma operação que expõe como as versões manipuladas das chamadas “canetas para obesidade” vêm impulsionando práticas ilegais orientadas à maximização do lucro dentro da medicina e do mercado de farmácias de manipulação. A Operação Slim mira profissionais de saúde, clínicas e laboratórios suspeitos de produzir e vender, de forma clandestina, versões manipuladas da tirzepatida, princípio ativo do Mounjaro.

Ao todo, foram cumpridos 24 mandados de busca e apreensão em São Paulo, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro. A PF apreendeu carros de luxo, relógios de alto valor e até aviões registrados em nome de laranjas. Segundo a corporação, a produção acontecia sem autorização sanitária e totalmente fora dos requisitos mínimos de qualidade. Nas imagens divulgadas, corredores aparecem abarrotados de frascos, indicando uma fabricação em escala industrial.

O principal alvo da operação é o médico baiano Gabriel Almeida, dono de uma clínica em Salvador. Ele reúne mais de 750 mil seguidores nas redes sociais e mantém parceria com uma farmácia de manipulação que soma cerca de 80 mil seguidores — e que tem o jogador Neymar Jr. como um de seus principais divulgadores.

Vídeos obtidos por VEJA mostram Almeida em lives com mais de três mil participantes, ensinando outros médicos a aumentar a margem de lucro com manipulados de tirzepatida. Em seguida, um dos líderes da farmácia aparece oferecendo pacotes promocionais e citando trechos de normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para dar aparência de legitimidade. Entre as estratégias de venda estão combos com “preço válido até meia-noite” e até a promessa de participação em um treino do Santos ao lado de Neymar para os dez primeiros compradores.

O grupo também chamou atenção por adquirir uma ilha particular na Baía de Todos-os-Santos, na Bahia, usada para encontros com médicos e empresários. Vídeos desses eventos mostram chegadas de helicóptero, bebidas caras e passeios de barco. Nas redes, Almeida e o líder da farmácia de manipulação promovem os encontros como um “ambiente exclusivo, com foco em gestão, expansão e mentalidade de alta performance”.

Em julho deste ano, o médico baiano já havia sido punido pelo Conselho Regional de Medicina da Bahia (Cremeb). O órgão apontou práticas consideradas graves, como usar receitas e atestados sem identificação adequada e até deixar folhas de receituário assinadas em branco, o que facilita fraudes. A investigação também registrou que ele realizava procedimentos sem obter o consentimento claro do paciente.

Prática não é isolada

Embora a Operação Slim tenha revelado até agora o caso mais ruidoso, o fenômeno está longe de ser exceção. Uma rápida passagem pelas redes sociais mostra outros médicos — muitos autodeclarados “especialistas” em emagrecimento ou endocrinologia, mas sem essas especialidades registradas no Conselho Federal de Medicina (CFM) — atuando lado a lado com farmácias de manipulação. Ao mesmo tempo, pipocam cursos que prometem ensinar como “aumentar a lucratividade” de tratamentos, quase sempre embalados como “protocolos de acompanhamento”.

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A narrativa é quase sempre a mesma: convencer o paciente de que fechar um combo — que reúne aplicação, orientações nutricionais e frascos manipulados — é mais vantajoso do que adquirir o medicamento original.

Um exemplo é um médico com mais de 1 milhão de seguidores que oferece cursos ensinando desde como aplicar implantes hormonais em pacientes durante o processo de emagrecimento cobrando valores mais altos — mostrando que a combinação de manipulados com outras práticas médicas controversas, como ‘chip da beleza’ e ozonioterapia, não é incomum — até como transformar a consulta em uma experiência “premium”, capaz de justificar preços acima de 10 mil reais.

Policia Federal
Aviões e carros apreendidos pela PF durante operação estavam registrados em nome de “laranjas”Policia Federal/Reprodução

Nesse ambiente, algumas farmácias passaram a oferecer a médicos uma espécie de porta de entrada para essas parcerias: as chamadas “calculadoras de lucro”. São simuladores pensados para mostrar, sem rodeios, quanto o profissional pode ganhar ao vender frascos manipulados. O médico coloca ali a dosagem das ampolas, o preço pago por frasco, o valor cobrado no “protocolo” e o número de atendimentos mensais. Em segundos, a ferramenta devolve o lucro estimado, como em qualquer simulador financeiro.

Em um dos atendimentos acompanhados pela reportagem, a própria farmácia recomenda que o médico compre dez frascos de uma vez em nome de um único paciente, para manter estoque no consultório. Depois, sugere repetir a compra usando o nome da secretária, para reforçar o abastecimento. Por fim, orienta dividir um mesmo frasco entre mais de um paciente — algo proibido e considerado de alto risco sanitário.

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Ruptura de princípios básicos

Para o médico sanitarista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Brasília, Cláudio Maierovitch, ex-presidente da Anvisa, esse conjunto de práticas representa uma ruptura com os princípios básicos que orientam o cuidado em saúde. “Muita gente pode olhar para essa estrutura e achar que é normal. Mas quando a medicina passa a operar como comércio, a lógica é certamente arriscada”, afirma.

“Em vez de alguém que examina, faz o diagnóstico, discute opções e avalia riscos, o profissional passa a agir como vendedor. E o vendedor não está preocupado com riscos ou em orientar sobre alimentação, estilo de vida ou alternativas terapêuticas, ele está preocupado em vender o que lhe dá lucro.”

Na opinião de Maierovitch, um dos motores dessa engrenagem é o uso intenso das redes sociais como vitrine e ferramenta de persuasão. Muitos desses médicos também atuam como influenciadores, acumulando milhares de seguidores e exibindo um estilo de vida associado à saúde, sucesso financeiro e consumo de luxo. “Isso cria uma impressão de credibilidade. A mensagem é: ‘olhe a vida que eu tenho, logo sou um bom profissional’”, explica.

Ele observa que o discurso opera em duas camadas: a promessa de emagrecimento e a sensação de pertencimento a um grupo de sucesso. “É uma lógica muito semelhante à de influenciadores que fazem rifas de carros de luxo ou divulgam sites de apostas. São grupos diferentes, mas que, querendo ou não, têm o mesmo modus operandi.”

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A relação entre médicos, indústria e farmácias de manipulação, lembra ele, não é nova — inclusive a realização de festas e eventos de luxo como estratégia de negócio. O que muda agora é a capacidade desses medicamentos — especialmente os manipulados — de escalar esse tipo de prática.

Para se ter ideia, dados da Receita Federal mostram que, entre 2023 e início de 2025, foram importados mais de 30 kg de semaglutida, princípio ativo do Ozempic, e quase 22 kg de tirzepatida. Pelas dosagens habitualmente usadas, esse volume seria suficiente para produzir pelo menos cerca de 6 milhões de doses de semaglutida e 4,4 milhões de doses de tirzepatida.

“São remédios revolucionários? Sim. Quando pensamos no que eles de fato tratam — diabetes e obesidade — havia um vácuo de possibilidades. Eles surgem como algo muito novo e importante em um mercado extremamente ávido por soluções”, observa o sanitarista.

Por outro lado, esse cenário encontrou terreno fértil entre profissionais interessados em lucratividade. “De repente, eles enxergam um ‘filão’. E se tornam, na prática, franquias de farmácias.” Além disso, há o apelo estético. “Eles [os remédios] ganharam enorme apelo em uma era obcecada por ‘corpos perfeitos’. Isso acaba sendo a cereja do bolo para quem vê nessa demanda um atalho para lucro fácil.”

As brechas e o desvio da ética

Pelas regras tanto do Conselho de Medicina quanto do de Farmácia, existe um ponto básico que define que o médico não pode ganhar nenhum tipo de vantagem de quem vende o remédio que ele prescreve. A ideia é proteger o paciente — afinal, o tratamento precisa ser decidido por critério clínico, não por interesse comercial. O caminho inverso também é proibido: farmácias não podem oferecer benefícios, pacotes especiais ou exclusividade a médicos.

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Como resume Maierovitch, essa barreira existe justamente para impedir que a receita vire negócio. “Se o médico ganha com a venda, a tendência é empurrar o produto que dá mais lucro, não o que faz mais sentido para a saúde do paciente”.

O 2º secretário do CFM, Estevam Rivello, reforça que o Código de Ética Médica impede o médico de atuar como farmacêutico ou ter participação direta em farmácias, justamente para evitar conflito de interesse. “O paciente tem o direito de escolher onde vai comprar o medicamento. O médico não pode direcionar suas prescrições exclusivamente para um laboratório ou farmácia”, explica. Ele também lembra que publicidade médica extravagante ou que prejudica a imagem da profissão pode render desde ajustamento de conduta, quando o médico é orientado a corrigir excessos antes de um processo formal até sanções, como suspensão do exercício da medicina.

Quando olhamos para as farmácias magistrais, porém, o cenário fica mais nebuloso. Apesar de terem autorização para manipular fórmulas a partir da prescrição médica, o que salta aos olhos é a produção em larga escala — algo que contraria a própria lógica da manipulação. Um exemplo legítimo seria quando uma criança não consegue engolir comprimidos e o médico prescreve o mesmo princípio ativo em solução líquida. Ou, então, quando alguém possui alergia a um composto específico e ele precisa sair de jogo.

Em resumo: são exceções, não regras. “Mas o que nós vemos são as farmácias produzindo em escala industrial”, observa o endocrinologista Clayton Macedo, diretor de comunicação da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM). 

E aí surge outro problema: se as magistrais não deveriam atuar como mini-indústrias, também não precisam seguir as mesmas exigências de controle da indústria farmacêutica tradicional. A lista de requisitos é longa — inclui, por exemplo, verificação de linha de produção, padrões de armazenagem, temperatura, concentração, estabilidade da molécula e posologia segura.

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“Porém, o que o que tem chegado aqui no Brasil são princípios ativos de países onde não há permissão para produzir ou prescrever tirzepatida. Ou seja, trazemos matéria-prima de nações que sequer fabricam o medicamento”, observa Rivello.

Isso não significa que todo manipulado seja ruim ou inseguro. Há bons profissionais e boas farmácias. “O problema é a combinação explosiva entre alta demanda, baixa fiscalização e interesses comerciais cada vez maiores. Quando tudo isso se mistura, o controle se perde e os riscos à saúde crescem em paralelo”, observa Maierovitch.

Quando se trata dos riscos, Macedo lembra que já há registros recentes de pacientes internados por náuseas incoercíveis, infecções no local da aplicação e até quadros sistêmicos após o uso de produtos manipulados. Ele acrescenta que o compartilhamento de frascos entre pacientes — prática sugerida por uma das farmácias — multiplica o risco de infecção, impede a rastreabilidade dos lotes e favorece erros de dosagem.

Nota técnica da Anvisa 

No fim de agosto, a Anvisa divulgou uma nota técnica que, à primeira vista, parecia um golpe contra o mercado irregular de manipulados das “canetas para obesidade”. O documento proibiu a manipulação da semaglutida e determinou que sua importação só pode ser feita pela própria fabricante, a Novo Nordisk — uma exigência esperada, já que se trata de um medicamento biológico complexo. Mas a tirzepatida, produzida pela Eli Lilly e hoje a mais manipulada de forma irregular, ficou de fora, gerando diversas críticas de especialistas.

Para Maierovitch, o texto até cumpre parte de sua função, mas tropeça no essencial. Ele reconhece que a semaglutida é, de fato, mais complexa do ponto de vista biológico, mas lembra que o mercado clandestino se apoia sobretudo na tirzepatida — um movimento que, segundo ele, deveria ter sido considerado.

Além disso, afirma que a nota não traz novidades: apenas recompila regras já presentes em normativas da própria agência. “Eles não inovaram. Apenas explicitaram pontos já previstos”, diz. O resultado é um documento que não encara as nuances do cenário atual, marcado por manipulação em larga escala, contrabando e desvio de finalidade.

Outro ponto levantado por Maierovitch é o formato da nota. A mistura de linguagens — farmacêutica, jurídica e o jargão da vigilância sanitária — acaba transformando o texto em um labirinto sem necessidade. E quando a comunicação se embaralha, o risco de interpretações perigosas cresce. “É como andar em cima de uma faca afiada tentando não cair para nenhum dos lados. Essa falta de clareza abre caminhos para distorções.”

A especialista em regulação sanitária, Thaís Gondar, compartilha da mesma preocupação. Na avaliação dela, a redação atual não fecha as brechas existentes. “A nota abre margem para que farmácias de manipulação continuem atuando de forma irregular, porque não há uma proibição clara e específica. A própria Anvisa se apoia na ambiguidade do documento”, afirma.

No Conselho Federal de Medicina, o diagnóstico é parecido. Rivello destaca que a nota técnica não resolve o que chama de “ponto cego” da fiscalização. Ele lembra que as farmácias tradicionais funcionam sob normas rígidas — controle de receitas, padrões de qualidade, segurança na produção.

Já as farmácias magistrais — que não deveriam operar em escala industrial — não são submetidas ao mesmo rigor. “Não há fiscalização adequada dos municípios, dos estados e, em muitos casos, nem da própria Anvisa. Por isso, hoje consideramos a nota técnica insuficiente para assegurar a segurança dos pacientes.”

Diante desse cenário, a SBEM defende que enfrentar o problema exige mais do que ações pontuais — é preciso um pacote articulado de medidas. A entidade propõe reforço da regulação e da fiscalização sanitária, com inspeções mais frequentes em farmácias de manipulação e clínicas, especialmente as que atuam pela internet e redes sociais.

Outro eixo é a atuação dos Conselhos de Medicina. “CFM e CRMs precisam apurar com firmeza casos de médicos que vinculam venda de manipulados a “pacotes” de tratamento, fazem propaganda enganosa ou participam de eventos estruturados em torno do lucro”, defende Neuton Dornelas, presidente da SBEM.

Regulação da Anvisa chega ao MPF

A discussão sobre as regras da Anvisa para o mercado de manipulados não ficou só entre técnicos e especialistas. O assunto já entrou no radar do Ministério Público Federal (MPF). Segundo o procurador Fabiano de Moraes, o órgão abriu um procedimento para entender se a regulação atual realmente dá conta de conter o avanço do mercado irregular desses produtos.

Ele explica que o foco não é investigar médicos ou farmácias individualmente, mas sim olhar para a atuação da própria Anvisa. Como a agência e as vigilâncias sanitárias estaduais e municipais são responsáveis por criar e fazer cumprir as regras, o MPF quer saber quais mecanismos existem hoje para fiscalizar a manipulação dessas substâncias — e, principalmente, impedir que elas acabem sendo usadas com objetivos estéticos ou comerciais.

De acordo com o procurador, a Anvisa já enviou ao MPF respostas preliminares sobre o que está fazendo, como quais normas estão em vigor e quais fiscalizações vêm sendo realizadas. Uma reunião entre os dois órgãos deve acontecer nas próximas semanas.

“A ideia é entender exatamente o que a Anvisa pretende fazer para melhorar essa regulação”, afirma. Embora o procedimento não investigue diretamente quem vende ou manipula esses produtos de forma irregular, o MPF pode encaminhar eventuais indícios de crime para os órgãos responsáveis, como os Ministérios Públicos estaduais.

Para o procurador, o ponto central é a proteção da saúde pública. Ele destaca que muitas pessoas acabam usando esses medicamentos sem conhecer os riscos, guiadas por orientações sem base científica ou por promessas ligadas ao mercado estético. A investigação também olha para práticas relacionadas, como o uso de implantes hormonais — um mercado em expansão, lucrativo e ainda sem comprovação científica sólida.

O procedimento ainda está em fase inicial. O MPF pretende avaliar se as medidas que a Anvisa planeja são suficientes para fechar lacunas regulatórias. Dependendo do resultado, o órgão pode recomendar novos ajustes, sugerir uma consulta pública ou, em último caso, adotar medidas judiciais caso considere que a regulação atual é insuficiente. A expectativa é que haja um encaminhamento até o final deste ano.

A reportagem procurou a defesa do médico Gabriel Almeida, mas não obteve resposta. A Anvisa e o Conselho Federal de Farmácia (CFF) também foram contatados, sem retorno, apesar das diversas tentativas. A matéria será atualizada caso haja manifestação.

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