No mundo da alta relojoaria, há aqueles que se interessam pela estética das peças. Outros se identificam com a história de alguma marca ou pelo legado de relógios específicos. Há aqueles ainda que são fascinados pelas complicações, as funções adicionais que um dispositivo pode ter, de fases da lua a calendários perpétuos. Mas cada compra é emocional, e não racional. Afinal, ninguém precisa obrigatoriamente de um relógio de pulso para saber as horas, especialmente um dispositivo mecânico de alto valor.
É o que conta Christian Knoop, alemão que ocupa hoje a posição de head designer da IWC Schaffhausen, marca de alta relojoaria suíça fundada em 1890 que hoje pertence ao conglomerado de luxo Richemont – dona de marcas como Cartier, Jaeger-LeCoultre, Montblanc, Panerai e Vacheron Constantin, entre várias outras.
Em visita ao Brasil, Knoop falou a VEJA sobre sua trajetória profissional, os desafios de projetar relógios e o fascínio que esses pequenos dispositivos exercem. Confira a conversa na íntegra:
Antes de trabalhar na IWC, você já tinha experiência em design em outras áreas, mas não na relojoaria. Porque decidiu mudar?
Eu fui treinado como designer industrial e fiz muitos produtos mais técnicos antes de entrar na IWC, mas eu não tinha nenhuma experiência desenhando relógios. Eu criei móveis, luminárias, eletrônicos, até alguns interiores de aeronaves. Quando entrei na IWC, tinha uma visão de relógios como produtos técnicos e pensava que não seria tão diferente daquilo que já havia desenhado antes. Afinal, seria preciso interagir com os engenheiros, com as equipes de marketing, participar de reuniões sobre a viabilidade técnica de algumas ideias. Tudo aquilo soava familiar para mim. Mas logo entendi que um relógio é um produto totalmente diferente.
Como assim?
Um relógio é determinado também pelo aspecto emocional que as pessoas associam a ele. Ninguém precisa de um relógio mecânico. Você pode saber as horas de graça, olhando para seu smartphone. Ou pode gastar pouco em um relógio de plástico com um movimento de quartzo. Se as pessoas decidem investir em um relógio mecânico, esse investimento será provocado por um fascínio por uma marca, por sua história, pelo aspecto artesanal do processo de criação e também pela beleza. É uma compra muito emocional. Tanto que muitas vezes aqueles relógios ganham um valor sentimental. Podem ter sido comprados com o primeiro salário em um novo emprego. Ou são um presente da esposa. Essa é a grande diferença para mim.

Os clientes estão interessados em entender como cada complicação funciona?
A beleza desse mercado é que não há um estereótipo de comprador. Todos têm uma paixão por relógios, mas cada um vê coisas muito diferentes naquele produto. E descobri isso conversando com clientes que têm uma conexão mais longa com a marca do que a minha. Estou só há 17 anos na IWC, mas há pessoas que compram relógios da marca há muitos anos. Há aqueles fascinados pelos aspectos técnicos e artesanais. Outros se interessam pela história da IWC. Há ainda aqueles que se apaixonam pelo aspecto visual, pela estética de uma peça específica e nem querem saber como eles funcionam.
Como equilibrar funcionalidade e beleza ao desenhar um novo relógio?
Trabalhamos com um time de profissionais experientes. São engenheiros especializados em movimento, em caixas, pessoas do laboratório de testes, da linha industrial, da produção, de vendas… Mantemos um diálogo constante, que às vezes pode ficar bem, digamos, animado. Mas a fricção também libera a criatividade.
Como funciona esse trabalho na prática?
Tentamos encontrar soluções que foram tecnicamente comprovadas. Por isso, nosso processo de desenvolvimento é muito longo. Queremos garantir que cada relógio dure várias gerações. E ele deve funcionar tanto do ponto de vista estético quanto em ergonomia. Nós, do design, trabalhamos com o mesmo software 3D dos engenheiros, o que nos permite compartilhar informações o tempo todo. Assim, podemos passar bastante tempo focados apenas na maneira como o bracelete é conectado à caixa, garantindo que o ângulo seja confortável e também resistente. IWC é conhecida por seus relógios grandes, mas estamos desenvolvendo outros, menores, atendendo a pedidos dos consumidores. E fazemos isso com a experiência que adquirimos produzindo esses modelos maiores.
E do ponto de vista do design? Como manter a assinatura da marca, mas também inovar?
Esse é um ponto interessante. Quando a IWC surgiu, no final dos anos 1890, ninguém pensava em termos de “branding”. Criava-se um produto, e aquele produto se tornava a marca. Ainda pensamos da mesma maneira. Se você olha para um produto nosso, percebe que somos inspirados pelo passado. Como disse, fazemos muitos relógios grandes. E isso nos deu uma reputação em produzir equipamentos robustos, populares entre militares, por exemplo.

Como você caracteriza os relógios da IWC?
Eles têm robustez, tamanho maior, são práticos e elaborados com uma abordagem técnica associada ao design. Esses são os princípios que até hoje nos guiam. Se você olhar para nosso portfólio, verá que temos relógios de aviação, temos a linha Portugieser, inspirada em instrumentos náuticos, e outras. Todas têm os padrões mais elevados em precisão, robustez e uma expressão estética pura e discreta.
Como o design pode antecipar ou estimular a reação emocional que você mencionou?
Hoje, todos falam de produtos icônicos e atemporais. São palavras muito abusadas em nosso mercado. Não podemos começar cada dia de trabalho dizendo: “vou criar um produto icônico”. Isso é algo que o tempo irá dizer. Mas você pode se dedicar e criar um lindo produto do qual você se orgulha. E para mim isso se manifesta na atenção aos detalhes. As pessoas podem ter preferências pessoais, estéticas ou relacionadas a cores. Mas todas percebem a atenção aos detalhes em um produto bem feito.
De que maneira você incorpora novos materiais no design de um relógio?
Como designers, queremos sempre inovar, usar novos materiais, fazer algo que nunca fizemos. E aí entra uma das maiores desvantagens da nossa indústria. Temos que garantir a longevidade dos produtos, e isso só é possível por meio de testes muito extensos. Temos que experimentar com novos materiais por muito tempo, muito mais que em outros setores. E isso coloca uma pressão enorme sobre quais matérias-primas podemos usar. A beleza de um relógio mecânico é o quão confiável ele é. Por outro lado, incorporamos novas tecnologias em um ritmo muito mais lento.
O mercado de relojoaria está muito concorrido hoje. Como você trabalha a imagem da IWC para se destacar?
Esse é o grande desafio. O segredo é ter um produto diferente, que seja reconhecível, com uma identidade forte. E não basta apenas ter um relógio extremamente bem projetado, que foi feito ao longo de muitos anos de dedicação. Temos que saber de que maneira comunicar esse relógio e a nossa marca, em termos de cores, de logotipo, para que uma pessoa que visite nosso espaço saiba imediatamente que está em um ambiente da IWC.
Você vê o fascínio por relógios mecânicos como uma maneira de tangibilizar um conceito tão intangível quanto o tempo?
Vou dar o exemplo do calendário perpétuo, uma complicação que mostra o dia da semana e a data para qualquer dia do ano, sem a necessidade de ajustes. Ele pode ser programado para o ano 2100. Ou para o ano 4000. E é um milagre absoluto que isso seja feito com pequenas engrenagens em uma pequena caixa. É algo realmente fascinante. E muitas pessoas compram um relógios desses para ter um pequeno mistério no pulso. É um gostinho da eternidade. É uma expressão para algo que você pode não compreender totalmente como um ser humano, mas que ainda provoca fascínio.