“A única frase que eu pediria que vocês repetissem é aquela do personagem: ‘a gente combinamos de não morrer’.”, convocou Conceição Evaristo de cima de um carro de som.
Brasília acordou ontem com um som antigo e, ao mesmo tempo, inédito. Milhares de mulheres negras — o maior segmento demográfico do Brasil, segundo o IBGE — caminharam pela Esplanada para lembrar ao país uma verdade que ele insiste em empurrar para a periferia do debate público: quem sustenta o Brasil não é reconhecida pelo Brasil.
As mulheres negras são 28% da população brasileira. São, portanto, o maior grupo populacional do país. Mas essa maioria vive como minoria política. Formam o grupo que mais sofre violência, o que mais enterra filhos assassinados, o que mais é empurrado para a informalidade e para a precarização. Têm os piores salários do país. Ocupam os piores indicadores de saúde e moradia. São vítimas de racismo e de um sexismo que não se constrange — porque a sociedade raramente o confronta.
É justamente por isso que o ato de ontem importa tanto. Uma marcha que, segundo a organização reuniu 300 mil pessoas, com esse peso simbólico, não nasce do improviso. É a continuidade de uma trajetória, como já foi dito e precisa ser repetido — não é ruptura isolada, mas fruto de um processo longo, paciente e coletivo de organização política das mulheres negras no Brasil. Uma caminhada que passa por quilombos, terreiros, associações de bairro, universidades, sindicatos, coletivos culturais, movimentos feministas e redes construídas muito antes do país aprender a dizer “interseccionalidade”.
Testemunhar o encontro entre gerações de idosas, que estão há tanto tempo em luta, com jovens universitárias e crianças negras me emocionou. Em especial o menininho preto que elogiou o colar com óleo essencial que carrego. Éramos poucos homens. Assim como éramos poucos os jornalistas, a cobertura foi feita principalmente pelos próprios movimentos negros.
Dona Marinete e Luyara, mãe e filha de Marielle Franco, ao lado de partamentares, trabalhadoras domésticas e mulheres que vieram de todo o país, muitas delas em viagens de ônibus.
Mães carregando as fotos de seus filhos assassinados transformando aquela dor tão profunda, quase nunca ouvida, em uma luta coletiva. Os tambores, xequerês e agogôs do bloco afro paulistano Ilu Obá de Min ritmando a força da marcha.
A primeira Marcha das Mulheres Negras, em 2015, se posicionava contra o racismo, o machismo e pelo bem viver. Reforçou uma pergunta simples, mas incômoda: como pode o maior grupo do país viver nos piores indicadores? E, mais do que isso, como é que a democracia brasileira segue avançando como se essa contradição não fosse a sua maior falha estrutural?
Por isso, o lema deste ano — reparação e bem-viver — merece atenção. Ao contrário do que muitos imaginam, “bem-viver” não é um convite a um otimismo ingênuo. É uma provocação política. Não basta sobreviver. Não basta resistir. A pauta é outra: construir condições dignas de existência. É afirmar que mulheres negras não querem apenas estar vivas — querem viver com saúde, segurança, respeito, direitos, oportunidades e futuro, em harmonia com as demais pessoas e a natureza.
E aqui está o ponto: quando mulheres negras reivindicam o bem-viver, não pedem só para si. Elas pedem para o Brasil inteiro. Porque um país que falha com seu maior segmento é um país que falha com todos. Reparação, nesse sentido, não é benefício: é correção de rota civilizatória.
A marcha de ontem lembrou ao Brasil que a democracia não é plena enquanto continuar sendo seletiva. E que não há projeto nacional possível sem que a força política, intelectual e cultural das mulheres negras esteja no centro — e não na margem — da conversa.
As mulheres negras marcharam. Elas marcharam. E a democracia, por alguns quilômetros, marchou junto.
“A marcha das mulheres negras por reparação e bem-viver é um marco na história e precisa ser um marco na história porque quando você pensa em reparação significa que teve danos e as mulheres negras, assim como mulheres indígenas, sofreram o dano de serem expropriadas durante séculos de sua própria identidade e da sua própria condição humana. Vieram para cá sem querer, foram submetidas a maus tratos, a trabalhos forçados, violências sexuais e depois foram excluídas de todas as oportunidades de bem-viver. Reparar e dar as condições para que o bem-viver passe a ser uma construção coletiva de uma sociedade que é diversa e que tem que criar as diferentes formas e maneiras das pessoas se sentirem livres e felizes. As mulheres negras são as que sofrem mais violência quando se trata do feminicídio. 63% do feminicídio incide sobre as mulheres negras. Nenhuma mulher deve ser assassinada, violentada em seus direitos”, disse Marina Silva à coluna depois de participar da marcha.