Cresci sem conhecer minha verdadeira origem. Nem meus pais eu sabia quem eram. Até os 18 anos, acreditava serem Clara e Naum, judeus que haviam fugido dos nazistas rumo ao Brasil durante a Segunda Guerra. Eu teria chegado aqui depois, aos 7, pela dificuldade de deixarem a Europa com uma criança tão pequena. Estava já casada quando por acaso encontrei em uma velha caderneta uma anotação que muito me espantou: ali estava escrito que meus pais eram outros, os poloneses Hinde e Helschel Raichel. Foi um choque. E resolvi ir atrás dos fatos, em uma busca por mim mesma que envolveu profunda emoção. A saga acabou virando o documentário Taibale, História de uma Criança Resgatada, premiado em festivais internacionais. Mais que narrar minha saga, serve como registro de um capítulo tenebroso que não pode por nada se apagar. Eu faço parte da última geração de sobreviventes do Holocausto e acredito que cutucar a ferida, deixando a memória viva, seja o caminho para evitar que aquele horror se repita.
Fui aos poucos desenrolando o enredo. Nasci na Sibéria, para onde minha mãe, recém-casada e grávida, acabou deportada. Meu nome russo era Maia, mas em casa me chamavam de Taibale — pombinha, em ídiche. O apelido era um toque de afeto no trágico cenário que se anunciava. Com ajuda financeira de meu avô materno, conseguimos voltar para casa, em uma região que hoje pertence à Ucrânia. Mas a tensão continuava e, diante do avanço do nazismo, meu outro avô desenterrou dois baldes de ouro para pagar uma família cristã disposta a me esconder. Enquanto o resto de meus parentes foi conduzido a um gueto, passei por várias casas até 1944. Descobri que meu pai havia sido executado dois anos antes. Caiu em uma armadilha junto a uma multidão atraída pela promessa de emprego. Foram todos fuzilados, mesmo destino de minha mãe e avós. Acabei sendo encontrada por uma tia que tinha apenas 16 anos e também ficou órfã. Seguimos em frente com outros sobreviventes, entre florestas e vagões de carga, tentando escapar da morte.
Em 1946, com o fim da guerra, chegamos a um campo de refugiados em Milão, onde uma entidade judaica ajudava a rastrear casas para quem não tinha mais familiares vivos aos quais recorrer. Foi aí que acharam em São Paulo um casal de judeus que havia perdido um filho. Eu poderia preencher o vazio. E assim foi. Minha tia acabou em Israel, onde reconstruiu a vida. Nós nos reencontramos nos anos 1960, em Tel Aviv. Queria saber a verdade, mas ela hesitava em me contar. Tinha perdido recentemente meu marido, e minha tia dizia: “Só vou falar quando você estiver feliz de novo”. Ao cumprir a promessa, revirando tantas lembranças dolorosas, desabamos. Mais tarde, em seu velório, conheci outros parentes vivendo em Israel que preencheram mais lacunas. Nunca toquei no assunto com meus pais adotivos. Naum era tão presente, e Clara, boa mãe e avó amorosa para meus dois filhos. Não queria machucá-los.
Ver minha trajetória transformada em filme foi uma revelação. Na tela, percebi quantas tragédias vivi. Também entendi como resisti a tudo. O Holocausto poderia ter me endurecido, mas não aconteceu. Fui a primeira presidente da Unibes, uma instituição que acolhe pessoas vulneráveis, e, ao lado de meu terceiro marido, fundamos um instituto na Zona Sul paulistana, onde lutamos para que pessoas mais pobres tenham um lugar para viver. É uma ponte que faço entre minha infância na guerra e os dias de hoje. Nos últimos tempos, observo com tristeza os desdobramentos do conflito na Faixa de Gaza. Só de ver o ódio crescendo nos dois lados, me dá medo. Aprendi que a paz é um valor maior que precisa ser cultivado. Por isso, sigo contando a minha história.
Antonieta Felmanas em depoimento a Amanda Péchy
Publicado em VEJA de 21 de novembro de 2025, edição nº 2971