Diante da ameaça real de que a COP30 termine sem um texto final de consenso, o ex-prefeito de Los Angeles e atual embaixador global para Diplomacia Climática do C40, Eric Garcetti, diz que o sistema internacional tem diante de si uma “vitória fácil” para evitar o naufrágio da conferência: reconhecer o papel decisivo das cidades.
“Se sairmos de Belém sem consenso, será a pior mensagem no momento mais urgente”, afirma. “Mas há um caminho evidente: incluir cidades e Estados como parte do processo. Isso está pronto para ser levantado como um troféu.”
A entrevista, concedida a VEJA, ocorre enquanto países travam sobre linguagem de combustíveis fósseis e financiamento, os dois blocos que hoje bloqueiam a redação final.
A ameaça de fracasso e a disputa sobre combustíveis fósseis
Para Garcetti, as divisões são reais, mas não insuperáveis. Ele destaca que “77% da população mundial vive em cidades, as áreas que já lidam diretamente com enchentes, incêndios e ondas de calor”. E por isso, argumenta, não há mais espaço para disputas que ignorem quem está na linha de frente.
“Cem por cento das pessoas com quem converso concordam: as comunidades precisam estar na mesa”, diz. “O que elas menos querem é ver negociadores discutindo tecnicalidades enquanto suas casas pegam fogo.”
Ele reconhece que países divergem sobre o ritmo de eliminação de fósseis. “Alguns querem ir mais rápido, outros querem um consenso mais estreito. Mas existe uma área em que ninguém discorda: a ação local funciona e está avançando mais rápido que a nacional.”
Ausência de Washington e o segundo recuo dos EUA do Acordo de Paris
A COP30 ocorre sem a presença de qualquer representante formal do governo Trump. Para Garcetti, a ausência é deliberada, mas não deve ser lida como falta de ação climática dos EUA.
“A administração atual adoraria ver este encontro fracassar. Isso provaria o ponto deles , o último suspiro do negacionismo climático”, afirma. “Mas a verdade é que eles não podem parar a revolução verde. Só podem desacelerar nosso próprio ritmo se deixarmos.”
Ele lembra que viveu situação semelhante na primeira saída de Trump do Acordo de Paris. “Quando o presidente disse que tiraria meu país do acordo, organizei mais de 700 prefeitos, de todos os partidos, para implementar Paris localmente. Talvez tenhamos feito mais justamente por causa das palavras dele.”
‘Os EUA ainda estão dentro’: força dos governos locais
Garcetti argumenta que o poder climático dos EUA hoje está descentralizado. Ele cita a presença robusta de governadores e prefeitos norte-americanos em Belém.
“Depois do Brasil, os EUA foram o segundo maior bloco de líderes locais na preparação da COP30”, diz.
Segundo ele, mesmo o segundo recuo federal do Acordo de Paris não altera a dinâmica estrutural do país.
“A maior parte das ações e dos recursos sempre veio de cidades e Estados”, insiste. “Washington pode causar algum dano, mas nunca poderá retirar o poder das comunidades.”
A diplomacia paralela das cidades
À frente de uma das maiores redes de cidades do mundo, Garcetti defende que prefeitos atuem como “diplomatas paralelos”.
“O papel das cidades nunca foi tão crítico. Os países fazem promessas, mas não conseguem implementá-las sem nós”, diz.
Ele destaca o mecanismo CHAMP, acordo firmado na COP28 para aproximar governos nacionais e locais. “Os países que trabalham com seus governos locais avançam mais rápido. É simples.”
Índia: “40% do futuro do clima global depende dali”
Ex-embaixador dos EUA em Nova Délhi, Garcetti faz uma avaliação enfática sobre o papel indiano no processo climático.
“A Índia é talvez o país mais importante do mundo para o futuro climático. Sozinha, responde por 40% do sucesso ou fracasso global,” afirma.
Ele destaca que o país ultrapassou 50% de capacidade instalada em renováveis e disputa com a China a liderança na produção de painéis solares.
“A Índia pode fabricar ao mesmo preço que a China. Isso muda tudo.”
Mais que isso, ele vê Nova Délhi como uma ponte entre Norte e Sul. “A Índia é ao mesmo tempo Norte e Sul, rica e pobre, digitalmente avançada e presa a fontes sujas. Sua voz é ouvida pelos dois lados.”
China e Índia como motores, e não entraves, da transição
Garcetti rejeita a tese de que as grandes economias emergentes freiam o consenso na COP.
“A China foi indispensável. Os carros elétricos que vejo nas ruas de Belém ou os painéis no meu país vêm de lá”, diz.
Sobre a Índia, argumenta que o país está prestes a se tornar “o próximo grande polo de manufatura limpa”, diversificando cadeias dominadas por Pequim.
Ele destaca ainda o caráter social da inovação indiana.
“É uma lição para América e Brasil. A Índia consegue escalar soluções em comunidades pobres de forma incrivelmente rápida.”
Sul Global: cooperação ainda insuficiente entre cidades
Embora reconheça a força política do Sul Global, Garcetti lamenta a baixa integração entre governanças subnacionais.
“Não vejo colaboração suficiente entre cidades do Sul Global”, afirma. “Por isso, estruturas como C40 e Global Covenant são tão vitais.”
O que acontece se a COP30 terminar sem acordo
Para Garcetti, um colapso da COP30 seria desastroso, mas não paralisante. “Ficaríamos profundamente desapontados se esta COP terminar sem acordo, especialmente sem reconhecer o papel das cidades. É a vitória mais fácil que está na mesa.”
Mas afirma que prefeitos continuarão agindo independentemente de aval diplomático.
“Não esperamos a permissão do sistema internacional. Não esperávamos antes e não esperaremos agora.”
E conclui: “Se não pegarem esse troféu, nós ainda vamos correr até a linha de chegada. Quem vive em cidades não tem o luxo de esperar.”