Depois de 15 anos da primeira publicação nos Estados Unidos, enfim temos à mão a edição brasileira de Mercadores da Dúvida. Esta é uma obra que nasceu clássica e não envelheceu – pelo contrário. Os problemas e dilemas apresentados em suas mais de 500 páginas permanecem arduamente atuais.
O livro, escrito pelos historiadores da ciência Naomi Oreskes e Erik Conway e agora lançado pela Quina Editora, expôs o modus operandi da indústria do tabaco para negar os malefícios do fumo valendo-se de cientistas, que semeavam incertezas e objeções em meio à formação de um consenso sobre os impactos do cigarro na saúde.
E a mesmíssima estratégia seria repetida, anos depois, para nublar a opinião pública sobre a chuva ácida, o buraco na camada de ozônio, os riscos do fumo passivo e, mais recentemente, o aquecimento global.
Não só a mesma tática. Muitas vezes, os mesmos cientistas – além de agências de relações públicas e lobistas – eram escalados para promover a dúvida e barrar a regulamentação de fenômenos comprovadamente prejudiciais ao meio ambiente e ao bem-estar humano.
As descobertas de Oreskes e Conway, muitas delas chocantes, foram fruto de cinco anos de trabalho investigativo, envolvendo a análise de milhares de documentos. Ao longo das páginas do livro, deparamos com cientistas, muitos deles físicos de renome e filhos da mentalidade da Guerra Fria, que se aliaram às empresas de tabaco e combustíveis fósseis para distorcer fatos e turvar o debate e a tomada de decisões.

Os ecos dessa história chegam até os nossos dias. Em meio à COP30, mesmo com um consenso técnico sobre a crise climática, a agenda de transformações políticas, econômicas e ambientais para lidar com um desafio sem precedentes ainda parece travada. Aí reside inclusive a relevância da obra, na visão da professora Naomi Oreskes, que assina um novo posfácio à edição brasileira.
Em entrevista exclusiva, a respeitada historiadora da ciência fala dos dilemas e conflitos em jogo, do impacto do governo Trump na questão climática e do que esperar desta COP no Brasil.
Com a palavra, Naomi Oreskes.
Quinze anos depois da publicação, Mercadores da Dúvida está mais atual do que nunca?
Sim, com certeza. E por pelo menos dois motivos. Primeiro, temos a COP30 ocorrendo no Brasil neste ano. Então pare e pense um pouco sobre isso. É a trigésima vez que líderes globais se reúnem para tentar fortalecer a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, e eles não conseguiram obter êxito em 30 anos. E acho que agora sabemos bem o porquê. A indústria de combustíveis fósseis e os produtores de petróleo fizeram de tudo para bloquear qualquer tipo de acordo significativo.
Toda vez que estamos prestes a chegar a um termo expressivo, vemos uma enorme resistência para sabotá-lo. Esse tem sido o padrão nas últimas três décadas. E o outro motivo óbvio da relevância do livro se chama Donald Trump. Sem querer dourar a pílula, os mercadores da dúvida agora comandam o governo dos EUA. Temos negacionistas das mudanças climáticas nos mais altos escalões americanos.
E o que isso implica na prática?
Agora vemos líderes empresariais dizendo “Ah, o aquecimento global não é tão ruim assim”. E testemunhamos as indústrias recuando de suas promessas anteriores de redução de emissões com uma desculpa atrás da outra. Os argumentos são diversos, inclusive o de que “precisamos de mais energia por causa da inteligência artificial”. São desculpas para negar a realidade, a gravidade e a urgência do problema.
O que os motivou a mergulhar no tema que viria a estar nas páginas de Mercadores da Dúvida?
Erik e eu já estávamos prestando atenção às mudanças climáticas havia algum tempo. Eu mesma havia me dado conta do problema desde 2004, quando escrevi meu artigo sobre o consenso científico a respeito. Mas nós realmente não sabíamos, não sabíamos de jeito nenhum, da conexão entre a negação das mudanças climáticas e as estratégias da indústria do tabaco. Quando descobrimos essa conexão, pensamos que tínhamos um livro para escrever. Porque não era apenas uma história sobre as peculiaridades do aquecimento global. Na época, discutia-se que as pessoas simplesmente não entendiam a ciência, que a ciência climática era um tanto quanto complicada. Mas, quando fizemos essa descoberta, mostramos que não se tratava apenas de ciência.
O livro expõe como a mesma estratégia usada pela indústria do cigarro, inclusive os mesmos atores, foi utilizada pelo setor de combustíveis fósseis. Essa foi a revelação mais chocante do trabalho de vocês?
Veja, a ciência que explica os efeitos do tabaco é totalmente diferente da ciência das mudanças climáticas. São especialistas diferentes que lidam com esses temas. Eis que encontrávamos as mesmas pessoas, que não tinham experiência alguma em pesquisas sobre câncer, epidemiologia e saúde pública, tentando negar dados comprovados de que o tabaco era letal. Então essa foi a grande descoberta que fizemos. E, mesmo hoje, quando dou palestras, ainda que as pessoas conheçam a história, elas ficam chocadas com o fato de que os mesmos cientistas, as mesmas agências de relações públicas e as mesmas empresas de publicidade que estiveram envolvidas com o tabaco repetem suas táticas com as mudanças climáticas.
E assim eles conseguiram influenciar a opinião pública?
Sabe, algo que realmente me marcou tem a ver com Edward Murrow. Ele era considerado o maior jornalista americano do século XX. Uma figura extremamente respeitada. Até fizeram filmes sobre ele. Quando éramos crianças, Murrow era muito, muito famoso. E aí nos deparamos com documentos que mostravam que até Edward Murrow tinha caído nesse truque. Nossa reação foi a do tipo: “Até tu, Brutus?”
Professora, quando olhamos para os protagonistas de Mercadores da Dúvida, os cientistas que defendem as indústrias do tabaco e dos combustíveis fósseis, a impressão que se tem é que eles trabalhavam mais por ideologia do que por dinheiro. Faz sentido esse diagnóstico?
Sim, totalmente. Essa foi a outra grande descoberta do livro. Queríamos entender por que esses homens faziam aquilo. Afinal, eram cientistas, certo? Não eram executivos de empresas. Parecia que estavam traindo a causa à qual dedicaram suas vidas. A maioria das pessoas pode presumir que a resposta era dinheiro, mas nós estávamos abertos a outras possibilidades. E, quando acessamos os arquivos e analisamos os documentos, não encontramos tantas evidências de que o dinheiro fosse a principal motivação deles. Descobrimos que a motivação era muito mais ideológica.
A visão de mundo dos “mercadores da dúvida” importava mais que o dinheiro em si?
Claro que o dinheiro também faz parte da história. Não estávamos negando que ele desempenhava um papel. Mas, se esses cientistas fizessem aquilo tudo apenas por dinheiro, você poderia dizer: “Ah, são pessoas corruptas”. E a discussão, um tanto óbvia, terminaria aí. Mas, quando há questões ideológicas no meio, o processo se torna mais sutil e requer explicação. Esse foi inclusive um dos desafios ao escrever Mercadores da Dúvida. Aliás, depois escrevemos um segundo livro, com mais de 500 páginas, para nos aprofundarmos nesse aspecto da ideologia, no que chamamos de fundamentalismo de mercado. É uma ideologia muito poderosa e difundida, mas que ganhou um elemento extra no contexto dos mercadores da dúvida: a concepção de que, além da eficiência econômica, o livre mercado também protege a liberdade política. Um argumento que ganhou terreno depois do fim da Guerra Fria.
E os protagonistas do livro, como os cientistas Fred Singer e Fred Seitz, levavam esse argumento a ferro e fogo?
Esses homens eram cientistas da Guerra Fria. Acreditavam que o trabalho deles durante o conflito entre os Estados Unidos e a União Soviética havia ajudado a conter o comunismo e a proteger o país. Na cabeça deles, a regulamentação pelo governo era uma espécie de porta dos fundos para o comunismo. Esse argumento político e ideológico justificaria o que fariam. Meu ponto é o seguinte: podemos discutir sobre quão eficientes são os mercados. É uma questão legítima. Mas, independentemente de sua opinião sobre isso, não há desculpa para mentir sobre a ciência. Não há desculpa para deturpar as evidências científicas. E, se temos problemas reais, precisamos descobrir como solucioná-los, não negar que eles existam. Esse foi o passo dado pelos mercadores da dúvida que tornaram suas posições e ações inaceitáveis.
Em que medida essa pauta inclusive ideológica influenciou os rumos das COPs?
Quando o livro foi lançado, em 2010, ainda havia uma questão em aberto sobre o impacto desses promotores da dúvida. Tínhamos evidências de que eles haviam sido influentes na administração de George W. Bush, o filho, e mobilizaram o Partido Republicano a não adotar uma posição firme sobre as mudanças climáticas, muito embora o primeiro presidente Bush, George H.W. Bush, tivesse prometido que tomaria medidas a respeito. Então, havia provas de que eles influenciaram na relutância dos republicanos em relação a essa agenda. Depois, por um tempo achamos que o governo Obama faria algo significativo em relação ao clima. Enfim, agora não restam dúvidas. Quero dizer, 15 anos depois, podemos afirmar que não houve nenhum progresso real entre as COPs.
Por quê?
O uso de combustíveis fósseis é maior do que nunca. As emissões, inclusive os níveis de CO2, estão mais altas do que nunca. Sim, fizemos progressos importantes em relação às fontes de energia renovável. Mas o que vimos é que ela foi adicionada à matriz energética, não substituiu os combustíveis fósseis. Continuamos dependentes deles, impulsionando a crise climática, e não se avançou na transição para as energias renováveis, que é do que realmente precisamos.
Quão otimista ou pessimista a senhora é em relação aos planos que podem ser concretizados após a COP30?
Essa é uma pergunta que me fazem o tempo todo, e eu costumo responder que não, não estou completamente sem esperanças nem vou para o meio do mato me matar a menos que alguém limpe toda a bagunça. Isso não é socialmente aceitável de se dizer. Mas eu não acho que temos motivos racionais para otimismo agora. É algo controverso de se dizer, porque existe uma enorme pressão para permanecermos otimistas, para que as pessoas não desistam. E eu concordo plenamente que não devemos desistir, mas passar uma falsa sensação de segurança ou de esperança não é algo realmente útil. Então eu me alinho com o filósofo americano Roy Scranton, que defende o que ele chama de pessimismo ético. Acho que temos que ser realistas sobre o que estamos enfrentando. Estamos lutando contra forças incrivelmente poderosas que provaram, nos últimos 15 anos, que farão quase tudo para preservar o status quo do qual se beneficiam. Precisamos pensar seriamente sobre o que podemos fazer para mudar a situação, porque o que fizemos até aqui não funcionou.
Precisamos mudar o formato de iniciativas como a COP?
O processo da COP é obrigatório pelos termos da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Então a ONU teria que se reunir e decidir fazer algo diferente, e isso pode ser politicamente inviável. Mas eu acredito que o processo da COP falhou. Ele foi cooptado por interesses ligados aos combustíveis fósseis. Basta olhar para onde aconteceram as últimas reuniões. Em países produtores de petróleo. Não acho que se possa esperar um acordo climático significativo se uma reunião ocorrer no Azerbaijão e metade dos presentes representar os interesses dos produtores de combustíveis fósseis. Então, se algo não está funcionando, é preciso admitir isso e tentar outra coisa. Porque pode ser um desperdício de tempo, dinheiro e capital humano ficar se reunindo em busca de um tratado internacional, sendo que poderíamos nos concentrar mais no que pode ser feito nos níveis local, estadual ou nacional.
E os mercadores da dúvida continuam ativos hoje em dia?
Bem, a indústria de combustíveis fósseis continua na ativa. Ela mudou, claro, até porque os argumentos de dez anos atrás não podiam ser mais os mesmos de hoje. Agora estamos vendo muita publicidade enganosa, na minha opinião, em torno da captura e do armazenamento de carbono e mesmo sobre a utilidade dos biocombustíveis. Ainda estamos vendo toda uma narrativa de que a indústria de combustíveis fósseis faz parte da solução do problema climático. Um aluno de pós-graduação acabou de elaborar um gráfico fantástico para um trabalho que mostra as emissões globais de carbono e a real capacidade de captura e armazenamento. E essa capacidade é tão pequena que mal dá para mostrar no slide. Só que a indústria alega estar tomando medidas significativas para obter subsídios fiscais. Aqui nos EUA temos crédito para isso. É uma grande fraude.
Quem é mais prejudicial à ciência hoje em dia? Esse fundamentalismo de mercado ou os governos autocráticos?
Bem, essa é uma ótima pergunta. Porque ambos são ruins. Mas o governo autocrático é pior porque, no fim das contas, detém o poder supremo. Quero dizer, os negacionistas tentaram minar a ciência de muitas maneiras diferentes. Eles trabalharam conscientemente para minar a confiança pública na ciência e promover noções falsas sobre o que a ciência realmente é. Mas, no fim das contas, eles não tinham o poder de realmente desmantelar a ciência nos Estados Unidos. Agora, no entanto, estão no poder. Não são mais dois grupos diferentes. São o mesmo grupo. Isso é assustador. E a ironia é que, nos Estados Unidos, a ciência financiada pelo governo é a nossa forma de ciência independente, porque a alternativa é aquela depende do setor privado. Então, o desmantelamento da ciência pública sob a atual administração americana é realmente preocupante.