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O diplomata que usou a literatura para resgatar sua autoestima e raízes africanas

Ernesto Mané teve uma vida acadêmica exemplar: tornou-se doutor em física nuclear pela Universidade de Manchester, no Reino Unido, e ingressou em um pós-doutorado no Canadá, esforços seguidos por anos de estudo e preparação para o concurso do Itamaraty, no qual passou e então assumiu a profissão de diplomata, no ano de 2014. Mané é também reconhecido pelo Mipad (Most Influential People of African Descent) como um dos 100 afrodescendentes mais influentes do mundo com menos de 40 anos e hoje trabalha na embaixada do Brasil em Buenos Aires, na Argentina.

Rodando pelo mundo em função de sua carreira, Mané demorou para conhecer aquele que seria o local de maior relevância para sua própria história: Guiné-Bissau, país africano de onde veio seu pai e toda a família paterna. Ausente durante parte da infância e toda a adolescência de Ernesto, seu pai se afastou da família e levou consigo as possibilidades de conexão dos filhos com suas heranças africanas.

Antes do início, de Ernesto Mané
Antes do início, de Ernesto ManéTinta-da-China Brasil/Reprodução

Decidido a apagar a distância criada pelas circunstâncias de sua criação, Mané embarcou para Guiné-Bissau em 2010, viagem da qual sairiam manuscritos e relatos que, em 2025, formariam seu livro de estreia, Antes do Início, publicado pela Tinta-da-China Brasil. Resultou da visita um processo de reflexão sobre a própria trajetória do pai,  que veio ao Brasil pouco depois da independência guineense, e uma análise sobre o lugar do negro na sociedade. O início das coisas, como narra Ernesto, foi seu objeto de estudo durante boa parte da vida adulta — enquanto isso, desconhecia seus próprios pontos de partida: de onde vinha a etnia da própria família ou como seus antepassados viveram.

Ao investigar tais lacunas, Ernesto admite que saiu da África com mais perguntas do que tinha quando chegou. “Estou convencido de que isso é um processo de uma vida inteira, ou de mais de uma vida”, disse o autor a VEJA. A entrevista na íntegra pode ser conferida abaixo: 

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Da sua visita à publicação do livro se passaram quinze anos. Você passou todos esses anos elaborando o que viveu na Guiné-Bissau? Como explica o que aconteceu durante esse tempo? Eu fiz a viagem em 2010, enquanto eu estava fazendo o meu pós-doutorado em Física e morando no Canadá ainda. Voltei de viagem no início de 2011 e no final daquele ano fui para a Índia e depois voltei para o Brasil para retomar a ideia de me tornar diplomata. Fiz as provas, estudei para o concurso do Itamaraty, fiquei me preparando durante 2 anos. Durante todo esse tempo, a ideia do livro não estava madura, eu não estava pensando nisso. Em 2014, eu passei no concurso e foi também o ano em que meu pai faleceu. Me tornei pai, trabalhei em Brasília entre 2015 até 2019. Depois tirei licença de 1 ano e fui para os Estados Unidos para a Universidade de Princeton. Lá eu conheci o jornalista e escritor Rodrigo Simon, que se interessou pela minha história e propôs escrever sobre ela para a Revista Piauí. Em 2020, revisando o texto escrito pelo Rodrigo e em meio a pandemia e ao isolamento, pensei em recuperar o projeto do livro. Peguei o diário, transcrevi e passei para o computador. 

Um aspecto interessante que você traz no livro é que quando você estava na Guiné-Bissau, você foi considerado branco pelos cidadãos guineenses. Você chegou a se incomodar com isso ou tentou resistir a essa ideia? As pessoas da minha família não me consideravam branco, pelo contrário. Eles me diziam o seguinte: “Você é tão guineense quanto qualquer guineense, a única diferença é que você foi parido fora da Guiné”, muito por conta da tradição patrilinear que existe na Guiné-Bissau. Na minha relação com minha tia, meus primos, meu avô, minha avó, não havia uma diferença. Algumas crianças na rua, quando eu passava, apontavam para mim e falavam: “Ah, olha o branco que tá passando ali”. E às vezes elas vinham pedir dinheiro, vinham pedir alguma coisa, mas a chave que eu encontrei para explicar isso era muito mais porque eles me consideravam forasteiro. Não era uma questão fenotípica, porque existem africanos de diferentes tons de negro, e existem guineenses também de diferentes etnias. Então nunca foi um problema, nunca entrei numa crise de identidade quanto a isso, eu sempre me vi como uma pessoa negra. O que sim me causou realmente um espanto foi entender que ali eu estava sendo chamado por essas crianças de branco por estar vestido de um jeito diferente, me comportando de um jeito diferente, por andar tirando fotos com a minha câmera fotográfica, como um gringo. 

Ainda conectado a esse ponto, há um trecho em que você discorre sobre autoestima da pessoa negra, que contém muitas lacunas não preenchidas, como efeito do racismo. Essa experiência que você teve na África se reflete hoje em dia na sua autoestima como um homem negro? Eu acho que foi fundamental esse processo, porque saber de onde a gente vem dá pelo menos um lastro. Eu me sentia incompleto por não ter tido essa presença paterna, não ter tido essas referências, e por viver num país que é marcado pelo racismo e que atua exatamente na quebra da nossa autoestima, e que também inferioriza a pessoa negra, associa a pessoa negra a coisas negativas. E eu poder ir até o lugar de onde vieram os meus ancestrais, os pais do meu pai, e poder, enfim, me reumanizar através justamente de entender a humanidade que existe do outro lado do Atlântico, isso para mim foi muito importante, nessa recuperação dessa minha história e da minha autoestima. 

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Algo em específico foi transformado? O meu sobrenome, o Mané, que no Brasil significa uma outra coisa, mas que eu passei a ver como um marcador da minha africanidade. O nome Mané tem a ver com povos que têm uma existência milenar, que remonta desde a época do Império do Mali, além de ser o marcador étnico da etnia Balanta, do meu pai e do meu avô. Isso me traz muito orgulho, porque eu tenho um ponto de referência, e independentemente das narrativas que se construam, eu pude construir a minha própria narrativa, sabendo da minha própria história e da história dos meus ancestrais.

Você tentou elaborar o luto da paternidade ausente por meio de sua viagem à Guiné-Bissau? Sim, com certeza. O meu pai foi bolsista do governo brasileiro, foi atraído para o Brasil para fazer uma formação aqui. Mas a expectativa dele e da geração dele era voltar para Guiné-Bissau depois e contribuir na construção do país, que era recém-saído do seu processo de independência. Então, pelo o que eu ouvi da minha mãe, a ideia sempre foi de que meu pai, depois que terminasse os estudos dele no Brasil, ia voltar para a Guiné-Bissau com toda a família, e a gente ia ser criado lá. Mas isso não aconteceu. Nosso pai sumiu, abandonou os filhos, cortou relação, e eu não tinha nenhum contato com a minha família paterna. Isso tudo me fazia querer entender melhor de onde é que meu pai vinha, que país era esse. Quando eu retomei o contato com meu pai aos 20 anos, eu estava buscando meu pai sim, como filho, mas além disso, eu sabia que ele era uma ponte para eu poder chegar até a África e conhecer a minha família guineense.

Qual foi a reação dele quando você disse que queria ir à Guiné-Bissau? Ele me desaconselhou a ir, disse que lá era um lugar perigoso. Ele tinha muito medo de que alguém pudesse fazer mal a mim lá, até como alguma vingança, para talvez prejudicar ele através dos filhos. Ele dizia que não era uma pessoa benquista lá e ficou muito preocupado. E talvez até o fato de ele nunca ter pensado em nos aproximar da Guiné-Bissau talvez tenha sido para nos proteger de algum medo que ele tinha. Eu nunca tive a oportunidade de conversar muito sobre isso com ele, são apenas especulações. 

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No final de todo esse processo, você conseguiu entender um pouco mais do motivo do seu pai nunca ter voltado para lá ou o motivo dele ter abandonado a família? Sim, entendi algumas coisas. Ele saiu da África em 1978 e voltou em 2008. Eu até participei do processo da construção dessa viagem dele em 2008, em que ele foi rever os pais 30 anos depois. E foi uma viagem super tensa, porque ele estava com medo que alguma coisa fosse acontecer com ele. Meu pai foi julgado de morte pelo Bernardo Vieira [presidente da Guiné-Bissau na época], ele tinha sido preso lá e conseguiu, justamente, sair do seu país com essa bolsa do governo brasileiro, mas se ele tivesse ficado na Guiné-Bissau, ele talvez tivesse sido assassinado. Então, sim, o tempo que ele ficou fora durante esses anos todos foi por medo de perseguição política. Mas o abandono paterno realmente é um mistério para mim, porque ele foi um pai presente na nossa primeira infância. Meu pai ajudou a criar os dois filhos que minha mãe tinha de outro relacionamento. Até os meus 5 ou 6 anos de idade, eu nem ia para creche, eu ficava em casa com ele. Mas aí teve essa separação dele e da minha mãe que foi muito traumática e ele sumiu. Eu cresci e minha mãe falando que ele se afastou da gente para atingir ela, como se fosse uma certa vingança. Eu não sei se foi só isso, por que ele teve filhos na África antes de vir para o Brasil, e quando ele saiu de lá ele também abandonou esses filhos, então eu fiquei me perguntando se isso era um traço característico dele, ou se teve alguma coisa específica na história dele com a minha mãe que levou a esse afastamento.

No livro, você fala sobre uma lacuna cultural entre Brasil e os países africanos. Acha que essa lacuna se aprofundou à medida que você foi conhecendo mais sobre a sua família na Guiné-Bissau ou diminuiu durante a viagem? Eu acho que em certo sentido ela diminuiu porque eu me aproximei dessa família, dessa cultura, desse país. Eu me tornei cidadão desse país. O que traz também consequências. Eu continuo num exercício constante de aprender sobre a Guiné-Bissau. Desde que viajei para lá, não consegui retornar ainda, mas eu tenho buscado absorver nas várias dimensões informações e questões ligadas à Guiné-Bissau para eu me tornar cada vez mais guineense, me apropriar cada vez mais desse lugar. Então, nesse sentido, eu estou muito mais próximo da Guiné Bissau do que eu tive antes da viagem. Por outro lado, você vai descobrindo coisas, abre novas caixinhas e você fica curioso. 

Em que sentido? Eu saí de lá com muito mais perguntas do que as perguntas iniciais que eu tinha, e eu acho que isso é um processo normal. A proposta do livro é também tratar um pouco essa questão assim da temporalidade. Eu fui atrás dos meus avós, aí automaticamente eu quero saber dos meus bisavós, de onde eles vieram. Eu não consegui ir no lugar onde os meus avós viveram quando eram crianças, então, assim, eu bati em certos limites. Fiquei com esse gostinho de querer conhecer mais, de querer entender mais, e eu estou convencido de que isso é um processo de uma vida inteira, ou de mais de uma vida. 

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