Exatos 57 anos depois do descobrimento do Brasil, a natureza e os costumes dos povos originários foram descobertos por muitos leitores na Europa quando começou a circular por lá o livro “História Verdadeira e Descrição de uma Terra de Selvagens, Nus e Cruéis Comedores de Homens”. Nessa obra, o autor Hans Staden, nascido em 1525 na cidade alemã de Homberg, descreve em primeira pessoa duas passagens pela terra recém-descoberta. A segunda viagem foi mais impressionante e dramática, com o relato dos apuros que ele viveu ao ser capturado por integrantes da tribo dos tupinambás enquanto trabalhava como artilheiro de um forte na ilha de Santo Amaro, defronte a Bertioga, em São Paulo. O plano no cativeiro que durou nove meses era que ele virasse a comida de seus algozes, que cultivavam o hábito de devorar inimigos derrotados. Esse calvário começou no dia em que Staden havia saído para caçar – e acabou sendo literalmente caçado. Picado com lanças, ferido em uma das pernas, espancado e nu, acabou sendo levado pelos indígenas a bordo de canoas em uma viagem de três dias de lá até a aldeia deles (não há certeza até hoje sobre a localização exata, mas se presume que o destino tenha sido Ubatuba, a mais de 170 quilômetros de Bertioga, ou o litoral do Rio de Janeiro, nas imediações de Angra dos Reis). Staden escapou por pouco dos canibais (franceses negociaram a soltura dele) e a história publicada, em edição acompanhada de ilustrações de animais e plantas, além de descrições de rituais indígenas e de costumes exóticos, tornou-se um clássico atemporal, com inúmeras traduções publicadas nas mais diferentes línguas, do grego ao japonês.
Para relembrar a rota da captura e comemorar em 2025 os 500 anos de nascimento de Hans Staden, um grupo de doze remadores do Clube de Regatas Bandeirante, de São Paulo, refez essa viagem entre os dias 14 e 16 de novembro. Eles partiram de Bertioga com o dia clareando no canal entre a cidade e a ilha de Santo Amaro. Perto do final da tarde, alcançaram a praia de Itaquanduba, o “quintal” da Marina Porto, em Ilhabela, contando na recepção com a hospitalidade do proprietário do local, o tarimbado velejador Marcos Möller. Na manhã seguinte, por volta das 7h30, saíram com destino a Picinguaba, uma das paradas mais belas de Ubatuba. De lá, no terceiro dia, cruzaram por mar os limites entre São Paulo e Rio de Janeiro, finalizando a jornada em Paraty, cidade na qual Hans Staden conta ter testemunhado um ritual de canibalismo de outro prisioneiro tupinambá. A expedição foi patrocinada pela Autoridade Portuária de Santos, com apoio do Ministério dos Portos e Aeroportos e do Governo Federal.
O time se preparou desde o começo do ano com a supervisão do treinador Acácio Roberto Lemos e era formado por quatro atletas veteranos do Bandeirante (entre eles, o autor desta reportagem), sete jovens do time universitário do clube (todos eles alunos da Poli-USP) e um atleta convidado da empresa Canoa Juquehy, especializada em roteiros de canoa havaiana em São Sebastião. O fotógrafo e cinegrafista Pisco del Gaiso acompanhou tudo de perto, colhendo material para um minidocumentário sobre a jornada, cujo lançamento está previsto para dezembro: “Refazer essa viagem através de um esporte tão original quanto o remo foi, além de tudo, um desafio físico e mental”, afirma. Foram percorridos pelos remadores, em esquema de revezamento, 250 quilômetros entre Bertioga e o litoral do Rio de Janeiro a bordo de dois doubles coastal, que são barcos a remo olímpico adaptados para travessias oceânicas. Tratou-se de um recorde esportivo, pois não há registro conhecido de outra jornada do tipo naquela região que tenha percorrido a mesma distância e com os mesmos equipamentos. Nas paradas, os barcos da equipe chamavam atenção. Não foi por acaso. O coastal é uma modalidade relativamente nova no Brasil, mas vem crescendo rápido aqui e em outras partes do mundo. Prova disso é que as provas da modalidade farão parte da programação oficial das competições dos Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 2028.

Ao longo de Bertioga, São Sebastião, Caraguatatuba, Ubatuba e Paraty, as cidades que ficavam no roteiro da viagem, a paisagem vista pelos remadores do Bandeirante na expedição batizada de Hans Staden 500 guarda ainda uma grande beleza natural, com sucessão de praias deslumbrantes, belas ilhas e morros cobertos por uma exuberância de árvores e plantas típicas da Mata Atlântica, mas é bem distante da terra que Staden teve a oportunidade de conhecer. Não há mais tupinambás na área há pelo menos quatro séculos e apenas pouco mais de 10% da vegetação original permanece em pé (nas últimas décadas, graças a esforços governamentais e da iniciativa privada, quase 5 milhões de hectares do bioma foram regenerados). Os atletas do Bandeirante ficaram mais de trinta horas na água na soma dos três dias, em esquema de revezamento. A cada uma hora, quatro atletas eram substituídos dentro dos doubles por outros quatro, que ficavam à espera dentro do Martinelli, a traineira de pesca usada na viagem como barco de apoio da equipe. É claro que nenhum dos integrantes da trupe passou por apuros comparáveis à luta pela sobrevivência de Hans Staden (o alemão conta no livro que os indígenas o pouparam por acreditar que ele tinha poderes sobrenaturais). No entanto, isso não significa que a jornada de remo tenha sido um passeio tranquilo, sem qualquer tipo de risco ou enfrentamento de situações estressantes.
APUROS NO MAR
A cada 24 horas, alguns atletas completaram mais de 30 quilômetros de remadas, chegando ao final com as mãos calejadas de bolhas. Vários deles seguiram em frente, mesmo com sintomas mais graves de enjoo no mar. Pitadas de emoção (e de exaustão) eram acrescentadas a cada troca de equipe, que eram realizadas dentro do mar: os remadores descansados pulavam na água e nadavam em direção aos colegas para fazer a substituição. Nada disso se compara ao cenário desafiador encontrado no terceiro dia da travessia. A jornada começou às 5h da manhã em Picinguaba. Poucos minutos após o início das remadas, já com o dia clareando, a situação encontrada contrariou as expectativas de quem esperava por uma tranquila viagem partindo de uma pacata e charmosa praia de pescadores. Parecia já o prenúncio do que viria pela frente nas horas seguintes. Os doubles tiveram que furar a sucessão de ondas que se erguiam em intervalos curtos à frente da traineira. O som da pancada da proa do barco de apoio pousando de volta ao mar era a trilha sonora predominante em meio a minutos em tensão da equipe que acompanhava tudo de fora da água. Felizmente, a travessia ocorreu sem nenhum problema mais grave, fora as caras assustadas das bravas duplas que encararam o mar pouco amigável no retorno ao barco de apoio, após o turno de trabalho.

No início da tarde do mesmo dia, os barcos a remo finalmente chegaram ao ponto que já se sabia que seria o mais desafiador, a Ponta de Joatinga, em Paraty. O histórico do local registra uma série de naufrágios de embarcações grandes, por uma conjunção de fatores. Como é uma das áreas mais expostas da Costa Sudeste brasileira, recebe rajadas de ventos fortes, sem qualquer proteção. Formam-se ondas que, nos dias mais dramáticos, superam 2 metros de altura. Quando a expedição Hans Staden passou por lá, as ondulações tinham 1 metro de tamanho. Mesmo assim, os remadores precisaram aumentar o esforço físico e a atenção para driblar as condições adversas dentro dos barcos, que têm dimensões modestas diante da força da natureza daquele trecho (cada um dos doubles possui cerca de 7,5 metros de comprimento e quase 2 metros de largura). Dentro deles, era difícil manter a direção certa com as vagas brincando de jogar os atletas em várias direções diferentes. Com isso, o rendimento da remada caiu para 6 kmh, metade da velocidade registrada nos dias anteriores.
Ao final do trecho, era visível o alívio geral. “Se as condições da Joatinga fossem um pouco piores, seria impossível ultrapassar aquele trecho”, afirma Antonio Carlos Bonfá Júnior, proprietário da empresa Barra Pro Mar e responsável pelo barco de apoio da Hans Staden 500. Tendo em conta o tamanho do desafio, a expedição Hans Staden vinha adiando a viagem desde julho até encontrar as condições mais seguras para a travessia, cruzando dados fornecidos pela Marinha e dos sites especializados em previsões de tempo para esportes náuticos. Quando capturaram o aventureiro alemão e passaram pela mesma área, vale lembrar, os tupinambás não tinham nenhum desses recursos. Eles dependiam apenas da robustez de suas canoas esculpidas em troncos de árvore e a experiência de navegar interpretando os elementos da natureza. “A travessia feita com os barcos modernos, apropriados ao mar, mostra o quanto os indígenas eram habilidosos para remar grandes distâncias”, comenta Charles Medeiros, ex-vereador de Ubatuba e autor da Lei 2681/05, que criou a Semana Hans Staden na cidade.

Na viagem após a captura, a bordo de canoas, cada uma com quase duas dezenas de remadores, indo de Bertioga em direção ao Rio de Janeiro, Hans Staden registrou posteriormente em seu livro vários pontos conhecidos do litoral sudeste, que coincidem com regiões visitadas pelos atletas do Bandeirante. Uma das primeiras paradas dos tupinambás ocorreu em São Sebastião. Staden menciona uma localização que pode ter sido a Ilha das Couves ou Toque-Toque Grande, segundo os pesquisadores. No segundo dia, ficando quase todo o tempo no mar, provavelmente alcançaram Picinguaba. A chegada ao destino no litoral do Rio ocorreu no final da tarde do terceiro dia. No tempo de cativeiro, uma das memórias mais impressionantes do alemão ocorreu quando foi levado para uma aldeia vizinha, nas redondezas de Paraty, onde um prisioneiro acabou sendo sacrificado e devorado durante o ritual de canibalismo. Staden conversou com o condenado antes de sua morte. “Tentei consolá-lo com o argumento de que iriam comer apenas a sua carne, ao passo que seu espírito iria para um lugar aonde os espíritos da minha gente também iam, na qual se encontrava muita alegria”, narra o alemão no livro. No retorno para a aldeia tupinambá, Staden ouviu a seguinte explicação de um deles sobre o hábito de devorar pessoas: “É assim o costume entre nós, e também é assim que fazemos com os portugueses”. Os tupinambás, vale lembrar, viviam em pé de guerra com os conquistadores e também combatiam as tribos que haviam se aliado a esses europeus.
Segundo a pesquisadora Vanete Santana-Dezmann, o livro dele com essas e outras descrições detalhadas ajudaram a obra a se tornar um dos maiores best-sellers dos tempos passados. “Ele contava coisas sobre uma parte do mundo que era muito importante, muito interessante, principalmente para os governos das nações europeias”, afirma. No Brasil, onde o livro foi publicado somente no início do século XX, o relato ganhou mais popularidade em 1927, quando o escritor Monteiro Lobato recontou a história com os personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo, batizando a obra de “Aventuras de Hans Staden“. O culto à memória do aventureiro vem se perpetuando graças ao trabalho de pessoas como Vanete. Ela é gestora da Flor do Tempo Editora e ajudou a adaptar uma versão em quadrinhos da história do aventureiro. Lançada em julho, a obra é de autoria do escritor alemão Detlef Günter Thiel, outro grande especialista no assunto. Em Ubatuba, cidade que tem uma rua no centro batizada em homenagem a Hans Staden, o ex-vereador Charles Medeiros tem construído uma ponte entre Brasil e Alemanha a partir da história do aventureiro. A ideia é estreitar laços entre Ubatuba, Homberg (onde nasceu Staden) e Wolfhagen (local em que viveu até o fim da vida, em 1576 ou 1579), promovendo entre elas ações culturais e ambientais. As duas cidades alemãs possuem estátuas e peças em museus rememorando a saga do compatriota por aqui.

Em seu livro, Staden conta que, após ser libertado, tomou o caminho de volta à Europa. O roteiro da embarcação passou pela Inglaterra, Nova Zelândia e Bélgica. “Foi assim que Deus Todo-Poderoso, para quem nada é impossível, ajudou a retornar até à minha pátria. Todo o louvor seja dado a Ele. Amém”, conclui o aventureiro ao final de seu livro. A história dele foi um dos assuntos mais comentados entre os remadores do Bandeirante nos três dias da travessia. Horas depois de desembarcar em Paraty, os atletas que fizeram a expedição em homenagem ao aniversário de 500 anos do nascimento do alemão retornaram de carro para a sede do clube, em São Paulo, impactados pelas belas paisagens vistas ao longo da viagem. “O Litoral Norte de São Paulo e o litoral do Rio de Janeiro são lindos por si só. Agora, conhecê-los por uma perspectiva completamente diferente é algo que apenas o remo pode nos proporcionar”, afirma Victor “Manaus” Tavares, um dos universitários da trupe. “O percurso é desafiador, mas muito compensador”, conta Jacques Benain, do núcleo de veteranos. A combinação entre esporte e história foi outro ponto que chamou atenção dos atletas. “Participar da travessia a remo foi uma experiência extraordinária, unindo desafio, natureza, remo e amizades em um momento de superação e companheirismo”, define Carlos Harada. Segundo Paulo Carneiro, o diferencial foi poder remar no mar, passando por lugares onde se fez a história. “Achei uma experiência única”, elogia. “Refazer a jornada de Hans Staden foi uma viagem no tempo”, completa Rogerio Barbosa.
Como se vê, foi mesmo uma viagem inesquecível, por motivos diferentes, tanto para Hans Staden quanto para os atletas do Bandeirante.