Por décadas, a ciência perseguiu duas proteínas como protagonistas quase absolutas do Alzheimer: a beta-amiloide e a tau. Era nelas que se depositava investimentos para descobrir como a doença começa e como poderia ser tratada. Mas uma nova pesquisa liderada pelo laboratório do neurocientista Eduardo Zimmer, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), acaba de acrescentar uma nova camada à essa história: não basta que essas proteínas se acumulem. Para que a doença se estabeleça e progrida, o cérebro precisa estar inflamado.
A conclusão, publicada na revista Nature Neuroscience, ajuda a explicar por que algumas pessoas com elevada carga de amiloide e tau desenvolvem sintomas e outras não. E, talvez mais importante, abre caminho para uma mudança de rumo no desenvolvimento de tratamentos.
À Agência Brasil, Zimmer explicou o processo com uma imagem simples: as proteínas que se acumulam no cérebro formam “pedrinhas”. Na presença delas, duas células — astrócitos e microglia — mudam de comportamento e entram num estado chamado de “reativo”. É essa reatividade que caracteriza a inflamação cerebral. O que o novo estudo mostra é que o acúmulo de beta-amiloide só consegue deixar os astrócitos reativos quando a microglia também está ativada. Sem essa dupla, nada acontece.
Até hoje, essa interação entre as células nunca havia sido demonstrada em pessoas vivas. Os cientistas já tinham observado fenômenos parecidos em animais de laboratório e em análises de cérebros pós-morte. Mas faltava ver, em tempo real, como esse diálogo molecular se desenrola dentro da cabeça de alguém vivendo com Alzheimer ou com risco de desenvolvimento.
Tecnologia de ponta para enxergar o invisível
Para mapear essa conversa entre células, os pesquisadores usaram PETs, exames de imagem capazes de identificar diferentes proteínas no cérebro. Para isso, foram utilizados três tipos de PETs: um para mostrar onde estão acumuladas as placas de beta-amiloide, outro para localizar os aglomerados da proteína tau, e um terceiro, mais raro, capaz de indicar onde a microglia está ativada, usando um marcador chamado TSPO.
Além disso, para saber se os astrócitos – a outra célula envolvida – também estavam reativos, a equipe analisou biomarcadores no sangue e no líquor, um fluido claro que envolve o cérebro e a medula espinhal, funcionando como uma “amostra” química do que está acontecendo no sistema nervoso. Ali, os pesquisadores procuraram sinais de inflamação e de degeneração, como o GFAP (marcador de astrócitos reativos), o p-tau217 (ligado ao Alzheimer) e o sTREM2 (ligado à microglia ativada).
Ao cruzar todas essas informações, os pesquisadores descobriram que o impacto da beta-amiloide sobre a reatividade dos astrócitos só aparece quando há microglia ativada. Em outras palavras, não é a presença da proteína isoladamente que desencadeia danos, mas o ambiente inflamatório que se forma quando as células de defesa do cérebro entram em ação.
O estudo também mostrou que esse processo funciona como uma espécie de dominó dentro do cérebro. Primeiro vêm as placas de amiloide; elas, junto com a microglia ativada, fazem os astrócitos entrarem em modo “reativo”. Quando isso acontece, a próxima peça cai: a proteína tau começa a sofrer alterações químicas (a chamada fosforilação) e passa a formar os emaranhados que prejudicam o funcionamento dos neurônios. Segundo os pesquisadores, modelos estatísticos indicam que essa sequência de eventos consegue explicar cerca de 76% das diferenças de desempenho cognitivo entre as pessoas avaliadas.
O estudo, apoiado pelo Instituto Serrapilheira, reuniu informações de 101 pessoas no Canadá, incluindo adultos saudáveis, indivíduos com comprometimento cognitivo leve e pacientes com Alzheimer já estabelecido. Para garantir que os resultados não fossem fruto do acaso, a equipe repetiu a análise em outro grupo, com 251 participantes.
Mudança de foco nos tratamentos
Zimmer destaca que a ciência ainda não sabe exatamente por que as placas de beta-amiloide aparecem no cérebro. O que se conhece, por enquanto, é um conjunto de fatores que aumentam ou diminuem esse risco. A genética tem um papel importante, mas ela não age sozinha — ela interage com tudo aquilo a que a pessoa é exposta ao longo da vida, o chamado expossoma, que inclui desde hábitos cotidianos até condições de saúde e ambiente.
Entre os fatores que elevam o risco estão tabagismo, consumo excessivo de álcool, sedentarismo, obesidade, doenças cardiovasculares e até mesmo a solidão e o isolamento social. Na outra ponta, ajudam a proteger o cérebro a atividade física regular, uma alimentação equilibrada, sono de qualidade e estímulos, como leitura e aprendizagem contínua.
A descoberta também abre espaço para uma mudança no foco dos tratamentos. Por muitos anos, a estratégia predominante foi desenvolver medicamentos capazes de remover as placas de beta-amiloide. O novo estudo sugere que pode ser preciso ir além: não só “limpar” as placas, mas também impedir que astrócitos e microglia entrem nesse estado de diálogo inflamatório que alimenta a progressão da doença.
“Então, além de tirar as ‘pedrinhas’, vamos precisar acalmar essa conversa no cérebro, acalmar esse diálogo entre as duas células”, explicou Zimmer à Agência Brasil.