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Jon Fosse honra tradição das grandes obras ambiciosas com sua Heptalogia

Por cerca de cinco anos, entre 2012 e 2017, o norueguês Jon Fosse voltou-se para um desafio ambicioso: depois de escrever mais de trinta peças teatrais e de se estabelecer como um dos dramaturgos mais populares do mundo, o autor de 66 anos adotou uma vida reclusa e decidiu que era o momento de se debruçar novamente sobre os romances de prosa lenta. Desse impulso intuitivo nasceu sua cultuada Heptalogia, obra-prima que redefiniu a carreira do escritor e consolidou seu estilo poético, com digressões longuíssimas, como uma das produções mais interessantes da literatura atual. A consagração absoluta veio em 2023, quando Fosse foi laureado com o Nobel de Literatura.

Com lançamento agora no Brasil pela editora Fósforo, a obra é símbolo de uma literatura dedicada, que desafia os autores a empreender cruzadas introspectivas e experimentações linguísticas em busca da ambição estilística. Entram nessa leva outras empreitadas de autores também chancelados com o Nobel, como Os Livros de Jacó (2014), da polonesa Olga Tokarczuk, com quase 1 000 páginas, e o mais curto, mas vigoroso, Sátántangó (1985), de 232 páginas, do húngaro László Krasznahorkai, que levou o prêmio em 2025.

HEPTALOGIA, de Jon Fosse (tradução de Leonardo Pinto Silva; Fósforo; 688 páginas; R$ 149,90 e R$ 104,90 em e-book)
HEPTALOGIA, de Jon Fosse (tradução de Leonardo Pinto Silva; Fósforo; 688 páginas; R$ 149,90 e R$ 104,90 em e-book)./.

Não é de hoje, claro, que grandes autores se embrenham em tours de force capazes de alçá-los ao Olimpo da escrita. Clássico da literatura francesa, Os Miseráveis (1862) exigiu de Victor Hugo dezessete anos de dedicação para ser concluído, e conta com edições de mais de 1 500 páginas. No início do século XX, o irlandês James Joyce viveu em quatro países, enfrentou cirurgias oculares e registrou suas ideias no que encontrasse pela frente antes de transferi-las para os cadernos que moldaram o monumental Ulisses (1920), que levou sete anos para ser concluído.

Os autores de hoje mantêm viva, a seu modo, essa antiga tradição. Escrita em sete partes, cada qual representando um dia da semana, a Heptalogia de Fosse acompanha os monólogos internos de Asles, pintor que vive a viuvez numa área isolada da Noruega, com apenas dois amigos. Em paralelo apresenta-se um outro Asles: um doppelgänger (termo alemão que designa o duplo ou sósias de uma pessoa) que transita entre o alcoolismo e a vida artística na cidade de Bergen. Por meio das nuances dos personagens, o autor estabelece uma narrativa que rompe as linhas temporais, funcionando como um fluxo de pensamento, no qual os períodos se estendem por diversas páginas sem um único ponto final para interromper digressões sobre a vida, a morte e a fé. O texto foi escrito originalmente em uma variante moderna do norueguês ligada à tradição oral. “Ele tem essa capacidade de manifestar na escrita coisas que a gente não consegue falar. Isso fica evidente na Heptalogia”, diz o tradutor brasileiro Leonardo Pinto Silva. O escritor certa vez revelou a ele, aliás, que nunca teria conseguido se dedicar a uma obra da mesma ambição com o assédio após o Nobel.

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CEREBRAL - Krasznahorkai (à esq.): obra-prima do autor húngaro virou filme de sete horas
CEREBRAL - Krasznahorkai (à esq.): obra-prima do autor húngaro virou filme de sete horasJanos Marjai/EPA/EFE; Arbelos Films/MUBI/.

Com temas simples, como a vida de pescadores no gélido país nórdico, o autor tem paralelos linguísticos com László Krasznahorkai, que bebe da mesma oralidade popularizada na língua portuguesa por José Saramago para romper com os parágrafos e as pontuações tradicionais. No caso do húngaro, o estilo surgiu já no começo da carreira: com pouco tempo e recursos disponíveis, ele costumava formar frases inteiras na cabeça, passando-as para as folhas já depois de completas, dando vazão à lógica dos pensamentos sem comportas gramaticais. Dessa escrita peculiar nasceu Sátántangó, seu primeiro romance. Publicado em 1985, o livro foi vertido em sensação literária — e num longa com sete horas de duração — ao retratar a história de um grupo de moradores desamparados em uma fazenda no interior da Hungria à época da queda do comunismo.

No caso de Olga Tokarczuk, chama a atenção em sua obra mais ambiciosa não só o tamanho, mas o esforço envolvido. Nascido da fascinação da autora por um líder religioso do século XVIII, Os Livros de Jacó levou cerca de sete anos para ser escrito, e narra a trama por meio de uma colcha de retalhos de cenas e vozes que se intercalam de maneira não linear. Trabalhos assim provam que a arte de criar uma obra monumental requer mergulhos profundos — e corajosos.

Publicado em VEJA de 14 de novembro de 2025, edição nº 2970

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