A reforma do serviço público para torná-lo mais eficiente é uma velha aspiração do brasileiro. Já em 1989, na primeira eleição direta pós-ditadura, Fernando Collor chegou ao poder amparado principalmente no discurso do “caçador de marajás”, como ele nomeava a elite de funcionários do Estado que acumulava privilégios. Nada aconteceu, Collor renunciou antes de ser cassado por corrupção, mas a necessidade de rever o aparato estatal permaneceu desafiando o país. Um passo nessa direção foi dado por Fernando Henrique Cardoso há quase trinta anos, em 1998, com medidas como a que fixou limites de gastos para despesas com pessoal. Desde então, o Brasil viu avançar outras reformas difíceis, como a trabalhista, a da Previdência e a tributária, mas a administrativa segue sendo a única das grandes reformas na gaveta.
A última tentativa começou a tramitar no fim de outubro na Câmara e já esbarra em antigas resistências. Na mesma semana em que a PEC 38/2025, cujo relator deve ser Pedro Paulo (PSD-RJ), alcançou o patamar mínimo de 171 assinaturas para ser protocolada, milhares de servidores foram à Esplanada protestar contra o que chamaram de tentativa de “demolir o serviço público”. A movimentação de servidores (são quase 600 000 só na máquina federal) surtiu efeito. Até quarta-feira 12, vinte parlamentares haviam pedido para retirar seus apoios. A debandada é insuficiente para interromper a tramitação, mas é um sinal relevante de que isso não será feito com tranquilidade.

Uma oposição aberta é feita pelos partidos de esquerda, como PT e PSOL, que convocaram até audiência na Casa para atacar a proposta, mas a relutância tem aumentado em siglas como MDB, PL, PP, Republicanos e PSD. “Embora apresente avanços pontuais na gestão pública e na transformação digital, a PEC contém dispositivos de amplo impacto, que demandam uma discussão mais profunda”, diz o líder da oposição, Luciano Zucco (PL-RS), que retirou o apoio. “A restrição aos supersalários é positiva, mas não podemos, em nome disso, fazer um arrocho no serviço público”, afirma Rogério Correia (PT-MG). Outro obstáculo é a pouca disposição da gestão Lula. Pedro Paulo, que é vice-líder do governo na Câmara, acha que o Executivo precisa escolher qual será sua posição. “Conversei com o ministro Fernando Haddad (Fazenda), que não mostrou nenhuma oposição; já a ministra Esther Dweck (Gestão e Inovação) tem uma ou outra questão crítica, mas nada significativo”, afirma.
Embora a resistência corporativista e o receio motivado por cálculos eleitorais fossem esperados, a PEC tem bons pontos para justificar sua discussão. O projeto impõe limites ao pagamento de supersalários e cria uma tabela de remuneração única para todo o serviço público. Também prevê avaliação periódica de desempenho dos servidores, na qual as promoções se baseariam, e acaba com privilégios como férias superiores a trinta dias no ano, penduricalhos e a aposentadoria compulsória como punição. Não há no projeto nenhuma previsão de fim da estabilidade, como alegam os sindicatos, embora as avaliações de desempenho possam resultar em demissão em alguns casos. São ações que deveriam ter sido implementadas há décadas, mas nada anda devido ao lobby contrário dos sindicatos e dos políticos receosos de enfrentá-lo.
Pedro Paulo prefere manter o otimismo em meio às dificuldades. Segundo ele, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), quer fazer da reforma uma marca de sua gestão e eles estudam atrelar alguma proposta pronta para votação à PEC, o que faria com que ela pulasse etapas de tramitação. O deputado não descarta votar a proposta neste ano, algo que praticamente só ele acredita a esta altura. Um dificultador adicional pode ser o calendário. Em 2026, os parlamentares entram no “modo campanha”. “Uma proposta desse tamanho tende a avançar mais no primeiro ano de governo, quando os políticos contam com mais apoio”, afirma Fernanda Melo, do Instituto República, think tank especializado em setor público.
Levantamento feito pela AtlasIntel para o Instituto República e divulgado na semana passada mostra que quase a metade (48%) dos brasileiros está insatisfeita com o serviço oferecido pelo Estado. O estudo também mostra que o Brasil tem proporcionalmente menos servidores, mas gasta mais com o funcionalismo do que a média da OCDE, entidade que reúne as nações mais ricas do mundo (veja o quadro). O mesmo mapeamento aponta que o apoio à reforma está dividido: 41% são favoráveis e 37%, contrários, o que pode indicar que a proposta é pouco conhecida. “Quando ouve a palavra ‘reforma’, o público acha que isso vai reduzir direitos, prejudicar o serviço público”, diz Melo. Na verdade, o que prejudica o atendimento às pessoas é uma máquina inchada, com funcionários desmotivados. Adiar novamente a necessária reforma é o caminho para perpetuar por mais tempo esse grave problema.
Publicado em VEJA de 14 de novembro de 2025, edição nº 2970
